Chamam-lhe novela, mas apetece-me dizer que este é um delicioso conto, que se lê num (pequenino) fôlego, que nos leva bem adentro duma família angolana, cansada do peixefritismo do dia-a-dia, e a mudança que um porco vai trazer às suas vidas...
Bom, o pai Diogo começa logo por dizer que não é porco, é leitão, mas para matéria de interpretação de leis (que é como quem diz, para os vizinhos que têm de viver com o bicho no mesmo prédio), é a mesma coisa. Com muitos truques e artimanhas, o animal lá ganhou um novo lar, pelo menos até ver a faca mais de perto... O problema é que os putos Ruca e Zeca afeiçoaram-se a ele, e para além de se ter transformado no herói de todas as histórias partilhadas no recreio da escola, recusavam-se a aceitar a ideia de ver o amigo em churrasco. Mais truques e engenharias serão precisas para manter o pai distraído de tão cruel destino, que lhes garantiu que o «carnaval da vitória» não chegava ao próximo carnaval...
Quem me dera ser onda, de Manuel Rui, da Cotovia, 6ª edição (Abril 2001; 1ª ed.: Julho 1991), 70 pág., pvp.: €8
«- Não percebo como neste país não há carne de porco. Disse-me um camarada que é o bicho mais barato de se criar. E aproveita-se tudo. A pele do boi não se come. A gordura também não. A do porco dá banha e torresmos. - Ruca interrompeu:
- Pai, a margarina faz-se com sebo de boi, a professora é que disse.
- Mas quem é que falou aqui em margarina? A tua professora a ver se troca sebo por toucinho! Pergunta-lhe. Ainda a carne de boi não se pode salgar. Quem não tem frigorífico está tramado. E o chouriço, morcela, paio e presunto? A carne de porco salga-se. E os ossos. Não percebo. Quando se viaja de carro encontra-se porco em toto o lado. Então por que é que o tal ministro não manda comprar os porcos das províncias e pôr a carne nas bichas de Luanda? Matadouro o tuga deixou. Vejam só: um povo revolucionário como o de Cuba tem a mesma opinião, come bué de carne de porco. - E virando-se para “carnaval da vitória”: - Por isso espera, o dia do teu fuzilamento já vem aí, falta pouco, que eu não sustento porcos a comida do Trópico. Era o que faltava. Vais lerpar. - E repetiu o gesto de corta pescoço. Os miúdos ficaram atónitos.» pág. 53
Quem me dera ser onda nos palcos de Luanda.
No uARTE, Manuel Rui diz assim:
«A realidade é sempre maior que o imaginário. Por mais que nós sonhemos com coisas, elas na realidade acontecem.
Depois de eu escrever o Quem me Dera Ser Onda estava num colóquio num centro universitário, na cidade de Luanda, e houve uma senhora que me disse "mas sabe essa história que você contou, eu tenho lá no prédio um porco que é criado por uma senhora, muito bem tratado. Ele ronca, as pessoas abrem o elevar e ele desce; é vadio, tem mais do que uma namorada, anda pelos sítios onde há lixo e depois à noite volta". Por mais que a gente imagine as coisas, elas acontecem.»
Este é um livro bookcrossing, que espero libertar ainda hoje, na livraria Clepsidra, em Lisboa
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