terça-feira, janeiro 31, 2006

segunda-feira, janeiro 30, 2006

ainda João Miguel Fernandes Jorge

O comboio-correio das 10 da noite partia da
minha terra para Lisboa. Fui tantas vezes
com o meu pai levar as cartas. Esperávamos
na gare. Se havia chuva ouvíamos o apito
quando passava à Granja vindo de Óbidos e

depois de correr o vale de S. Mamede.
O que mais me seduzia era o seu peso o negro
da máquina o movimento do êmbolo a nuvem de vapor
correndo toda a gare. Chegava entre videiras e
pântanos. O chefe da estação de

bandeirinha verde dava o sinal de entrada. Era
o intenso barulho os ferros da travagem
o bater das portas as carruagens verdes
enegrecidas, os castanhos wagons. Máquinas de
carvão, a diesel depois. O degrau de madeira ao

longo da carruagem, a romano nas portas I, II e
III.
Anos depois, já de mim se dizia «um homenzinho»
viajei nesse comboio das 10. Partia de
Coimbra, às cinco horas. Pelos campos do Mondego

a água, a matéria do ferro, confundi
com o caos. Reconheço neste comboio a forma
obscura, a intuição ridícula das imagens. A noite
corria de mistura com a triste lâmpada do
corredor, benefício do mistério, fogo fechado pela
trovoada sobre os campos do arroz, sobre o pinhal
de Leiria.
Viajava em segunda. Vinha para casa no natal.
Eu tinha um emblema, vermelho e branco dos suíços,
na lapela do sobretudo. O meu irmão, as mãos
gretadas das frieiras sob umas luvas azuis. No

banco em frente,
uma professora de geografia rezava o terço
atenta à formação do espírito científico nascente.
Descolorido amor humano,
fornalha de comboio, coração das coisas a noite
corria fora e dentro da carruagem verde.

Meu pai estava na gare.
A longa fita de cabedal para fechar, abrir as
janelas. A rede onde pousava as malas.
Os corridos bancos de madeira ficavam na III.
Um guarda republicano cerrava todas as

noites sobre o azul do capote a portinhola.
O traço do comboio separa o céu da terra sob as
estrelas
sob o limite da chama
a arte imita tanta vez a natureza.
de João Miguel Fernandes Jorge


para o Kraak/Peixinho

domingo, janeiro 29, 2006

Montra: semana 05/06

Montra: tentativa de criar o hábito de, uma vez por semana, apresentar livros e autores, histórias e capas, sete de cada vez, com maiores ou menores introduções. Novidades e não só, em português ou nem tanto, aqui ficam as primeiras sete sugestões.

"Marta and Marçal looked at each other doubtfully, and Marçal said cautiously, If I was in your place, and knowing as I do how the Centre works, I wouldn't get my hopes up, Don't forget that he was the one who said he might give me an answer today, Even so, that might have just been talk, the sort of thing they say without really thinking about it, It's not a matter of getting my hopes up, when the power of decision lies in other people's hands, when we can do nothing to move them one way or the other, the only thing left to do is to wait."
pág. 105


The Cave (A Caverna), de José Saramago, tradução de Margaret Jull Costa, editado pela Vintage Books em 2003


"Ora, na cave das suas instalações do Campo de Santa Clara, a editora Arcádia tinha oficinas próprias de acabamento, onde eram metidos em capa os livros brochados (impressos fora e recebidos em folha aberta) e onde mandava o Alfredo, distribuindo trabalho, zelando pelas máquinas, ouvindo queixas, subindo cá acima a dar-lhes voz e fazendo as honras da casa às visitas que se dignavam descer lá abaixo. «Esta profissão enche-me a casa com tantos livros que, outro dia, desfiz-me de um monte deles», explicou uma vez o Alfredo. «E qual foi o critério da escolha?», perguntou perfidamente um visitante. Cândida, a resposta veio assim: «Tudo o que era livro de menos de cinquenta escudos dei-o»..."
pág. 25

Profissões do Livro, de Jorge Manuel Martins, editado pela Verbo em Setembro de 2005


"J'avais seize ans. Je ne possédais rien, ni biens matériels, ni confort spirituel. Je n'avais pas d'ami, pas d'amour, je n'avais rien vécu. Je n'avais pas d'idées, je n'étais pas sûre d'avoir une âme. Mon corps, c'était tout ce que j'avais."

Antichrista, de Amélie Nothomb, foi editado em Portugal pela Asa neste mês de Janeiro, depois de Temor e Tremor e de Dicionário de Nomes Próprios.

Páginas dedicadas a Amélie Nothomb no Complete Review e no Livresse, e uma página dedicada a Antichrista no Series Litteraires.



goyang kaki (Indonesian) relaxing and enjoying oneself as problems are sorted out by others (literally, to swing one's legs)
casarse de penalty (Spanish) to get married after discovering a pregnancy
il giuocare non è male, ma è male il perdere (Italian) there is no harm in playing but gret harm in losing
bodach (Scottish Gaelic) the ghost of an old man that comes down the chimney to terrorize children who have been naughty

The Meaning of Tingo and other extraordinary words from around the world, um quase-dicionário compilado por Adam Jacot de Boinod (que também mantém um blog), editado pela Penguin em 2005.



A Íbis

A íbis, a ave do Egipto
Pousa sempre sobre um pé
O que é
Esquisito.
É uma ave sossegada,
Porque assim não anda nada.
de Fernando Pessoa

Manuela Nogueira, escritora, responsável por esta antologia e sobrinha de Fernando Pessoa: "Lembro-me de lhe pedirmos para fazer de Íbis. Ele punha-se assente numa só perna e dizia: «A Íbis, ave do Egipto...»"

O Melhor do Mundo são as Crianças - antologia de poemas e textos de Fernando Pessoa para a infância, editado pela Assírio & Alvim em Outubro de 1998.


Corpos há que terminam em pleno mar.
São corpos e são manhãs.
São corpos e são agosto atravessados pelo sol
por breves ventos.

Abandonado limite
quem levando aos lábios a chávena de café
retém o gesto o vidro os dedos.
Nostálgico café por horas e horas repetido.
de João Miguel Fernandes Jorge


Antologia Poética 1971-1994, de João Miguel Fernandes Jorge, editado pela Presença em Novembro de 1995.


«O casal inscreve-se no deserto urbano e na solidão dum terceiro cliente do bar, e é sobre isto que repousa o efeito psicológico: embora o quadro deixe reconhecer claramente o meio social, através do contraste entre o bar e as lojas no plano de fundo, é principalmente local de projecção para fantasmas diferentes.»
pág. 80
onde se fala de Nighthawks

Edward Hopper, painter of the loneliness of big-city people

Hopper, de Rolf Günter Renner, editado pela Taschen em 2001



Um livro por dia dá saúde e alegria

domingo, janeiro 08, 2006

As histórias de 2005

Época de balanços, pois então. A edição de ontem do Mil Folhas traz-nos as melhores leituras de 2005 para um conjunto de autores, acrescentada da votação para escolher os melhores livros do ano passado, promovida pelo blog do Livro Aberto, que ainda decorre. Aqui ficam os livros que mais se destacaram.

Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles, o Pelida
(mortífera!, que tantas dores trouxe aos Aqueus
e tantas almas valentes de heróis lançou no Hades,
ficando seus corpos como presa para cães e aves
de rapina, enquanto se cumpria a vontade de Zeus),
desde o momento em que primeiro se desentenderam
o Atrida, soberano dos homens, e o divino Aquiles.


Ilíada, de Homero (trad. Frederico Lourenço), Cotovia


"When the renowed aviation hero and rabid isolationist Charles A. Lindbergh defeated Franklin Roosevelt by a landslide in the 1940 presidential election, fear invaded every Jewish household in America. Not only had Lindbergh, in a nationwide radio adress, publicly blamed the Jews for selfishly pushing America toward a pointless war with Nazi Germany, but, upon taking office as the thirty-third president of the United States, he negotiated a cordial "understanding" with Adolf Hitler, whose conquest of Europe and whose virulent anti-Semitic policies he appeared to accept without difficulty."

A Conspiração Contra a América, de Philip Roth, Publicações Dom Quixote


Nestas salas escuras, onde vou passando
dias pesados, para cá e para lá ando
à descoberta das janelas. – Uma janela
quando abrir será uma consolação. –
Mas as janelas não se descobrem, ou não hei-de conseguir
descobri-las. E é melhor talvez não as descobrir.
Talvez a luz seja uma nova subjugação.
Quem sabe que novas coisas nos mostrará ela.


Os Poemas, Konstandinos Kavafis (trad. Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis), Relógio d'Água