segunda-feira, novembro 29, 2004

HISTÓRIAS DE 1 MINUTO (VOL. 1) - István Örkény

Informação

"Há já catorze anos que está sentado à entrada de um postigo. As pessoas só lhe dirigem dois tipos de perguntas.
- Onde ficam os escritórios da Montex?
Ele responde:
- Primeiro andar, à esquerda.
A segunda pergunta é:
- Onde fica a Empresa Transformadora dos Desperdícios de Resinas?
A esta ele responde:
- Segundo andar, segunda porta à direita.
Há catorze anos que nunca se engana, toda a gente tem recebido a informação correcta. Uma vez, porém aconteceu que uma senhora se dirigiu ao postigo e lhe fez uma das perguntas habituais:
- Pode fazer o favor de me dizer onde é a Montex?
E ele, nessa única vez, alongou os olhos e disse assim:
- Todos nós vimos do nada e à merda do nada vamos voltar.
A senhora apresentou queixa. A queixa foi examinada, discutida e depois arquivada.
E de facto, não era assim tão grave."

Contos de 1 minuto (Vol. 1), de István Örkény (tradução de Piroska Felkai), 1ª edição (2004), Cavalo de Ferro, 155 págs., pvp: 15€

Durante a minha incessante busca e descoberta da literatura húngara (que não é assim tão escassa, traduzida para português), dei por mim a esperar 12 longos e exasperantes meses pela edição deste livro. A Ficções deu mais uma facadinha na angústia com a publicação de um dos contos no Ficções de Comer. Mas a espera valeu a pena. Sendo uma colectânea de contos, é difícil descrever o livro como um todo. Örkeny salta do simples para o absurdo, do grotesco para o romântico, havendo apenas dois pontos em comum nas suas histórias: um é a ausência de "moral da história"; o outro é a fantástica capacidade de deixar o leitor a pensar "mas o que é que ele quis dizer com isto?". A sua escrita deixa margem de manobra para o leitor tirar as suas próprias conclusões. Este, se estiver "desatento" vai dar por si a divagar mentalmente, por horas a fio. Sim, porque, de um minuto, estes contos têm apenas a sua leitura.

Os nossos filhos

"Era uma vez uma viúva velhinha e essa viúva tinha dois belos filhos. Um, o mais velho, empregou-se num navio cuja primeira viagem o levou ao Oceano Pacífico. O que lhe aconteceu, ninguém pode dizer, porque desapareceu no mar sem deixar vestígios.
O mais novo ficou em casa. Mas uma vez, quando a sua mãe o mandou comprar vermicida (a farmácia, que é a sétima casa a seguir à sua), nunca mais voltou. Também ele desapareceu para sempre.
Esta é a realidade dos factos. Mas nos contos as viúvas costumam ter três filhos. É sempre o terceiro que consegue o seu lugar ao sol."

sábado, novembro 20, 2004

ROSA DO MUNDO - 2001 poemas para o futuro

(Mito da criação)

No princípio existia uma enorme gota de leite.
Então chegou Doondari e criou a pedra.
A pedra criou o ferro;
E o ferro criou o fogo;
E o fogo criou a água;
E a água criou o ar.
Então Doondari desceu pela segunda vez.
Juntou os cinco elementos
E moldou-os num homem,
Mas o homem era orgulhoso.
Então Doondari criou a cegueira e a cegueira derrotou o homem.
Mas quando a cegueira se tornou demasiado orgulhosa,
Doondari criou o sono, e o sono derrotou a cegueira;
Mas quando o sono se tornou demasiado orgulhoso,
Doondari criou a preocupação, e a preocupação derrotou o sono;
Mas quando a preocupação se tornou demasiado orgulhosa,
Doondari criou a morte, e a morte derrotou a preocupação.
Quando a morte se tornou demasiado orgulhosa,
Doondari desceu pela terceira vez.
E ele veio como Gueno, o Eterno,
E Gueno derrotou a morte.
trad. Vasco David


Esta saga disfarçada de poema vem do Mali, e entre ela e o que se segue estão 1999 poemas para o futuro, naquele que é um dos objectos mais bonitos que se podem encontrar nas livrarias.
Objecto de desejo claro está, até porque tão monumental obra tem um preço condizente. Mas para quem nunca tenha concretizado essa vontade, aqui fica a sugestão: só até ao final do ano, a Assírio & Alvim disponibiliza estas 1919 páginas de viagens e sonhos por 35€, menos 20€ que o preço de venda ao público habitual.
Venham eles, os sonhos, e as descobertas.


TESTAMENTO

Após a morte de Deus
abriremos o testamento
para saber
a quem pertence o mundo
e aquela grande armadilha
de homens.

Ewa Lipska (Polónia), trad. Aleksandar Jovanovic

sábado, novembro 06, 2004

a mão que faz o livro

"- (...) Ao princípio trabalhava com planos muito detalhados e agora não. Agora é a mão que faz o livro. Por exemplo, para escrever aquelas crónicas de jornal, quando me sento não sei o que vou escrever, escrevo a primeira palavra e depois as palavras geram-se umas às outras. Ao princípio sim, fazia planos e esquemas, tinha de ter uma ideia, e agora não.

- O que mudou?
- Não tinha ainda percebido que o livro é uma entidade independente de si e que tem as suas leis próprias e que é um organismo vivo, não depende de um acto voluntário seu. É qualquer coisa que nasce de uma zona que não sabe se é sua, se é de outra pessoa, de quem é, e que não lhe pertence. Isto por um lado também é bom porque elimina toda a vaidade que possa existir."

entrevista de Paula Macedo, foto de João Barata, em A Capital, de 04/11/04

sexta-feira, novembro 05, 2004

"Eu Hei-de Amar Uma Pedra"

Na próxima 3ª feira (9/11) é posto à venda o mais recente livro de António Lobo Antunes, pela editora Dom Quixote. A acompanhar este lançamento chegará também às livrarias uma fotobiografia do autor, assim como 4 novas edições definitivas (ne varietur) de livros já publicados.

A menos de uma semana de distância, o espanto. Na capa de "A Capital" de ontem, 5ª feira, uma grande fotografia de António Lobo Antunes e o anúncio da "primeira grande entrevista" do autor antes da publicação de "Eu Hei-de Amar Uma Pedra". Até dia 9, pilham-se aqui as suas palavras.


"- Este livro tem um lado cubista, tenta mostrar as perspectivas todas. Concorda?
- Não li o livro, só escrevi e portanto a minha opinião nunca é a opinião de um leitor, não tem distância. Eu também não leio os livros. No fundo é um paradoxo: escrevo os livros que gostaria de ler e acabo por não os ler. Quando acabo um livro, quero é esquecê-lo para fazer outro. Nunca li um livro antigo. Nunca.

(...) não posso dizer muito bem que sou o autor dos livros, parece que eles estavam ali à espera. É como a gente meter a mão num saco às cegas e aparece qualquer coisa, as palavras são tiradas do fundo de um poço, uma a uma."

entrevista de Paula Macedo, fotos de João Barata, em A Capital 04/11/04