quinta-feira, dezembro 30, 2004

Os livros das nossas vidas

«Uma das razões pela qual há tão poucos de nós a agir, em vez de reagir, reside no facto de estarmos continuamente a sufocar os nossos impulsos mais profundos. Posso ilustrar esta ideia escolhendo, por exemplo, a maneira como a maioria de nós lê. Se se trata de um livro que nos entusiasma e nos estimula o pensamento, lemo-lo a correr. Ficamos impacientes por saber aonde vai aquilo levar; queremos captar, possuir a mensagem oculta. Repetidamente, nesses livros, tropeçamos numa frase, numa passagem, por vezes num capítulo inteiro, de tal modo estimulante e provocador que mal entendemos o que estamos a ler, de tal modo o nosso espírito fica sobrecarregado de pensamentos e associações que nada têm a ver com a obra. É raro interrompermos a leitura a fim de nos darmos ao luxo de desfrutar os nossos próprios pensamentos! Não, abafamos e suprimimos as nossas ideias, pensando poder retomá-las mais tarde, depois de termos acabado o livro. Claro que nunca o fazemos. Como seria melhor e mais sensato, mais instrutivo e enriquecedor, se seguíssemos a passo de caracol! Que importa se levássemos um ano, em vez de uns quantos dias, a acabar o livro?

«Mas não tenho tempo para ler assim!», objectar-me-ão. «Tenho outras coisas para fazer. Tenho deveres e responsabilidades.»

É precisamente àqueles que falam assim que estas palavras se destinam. Quem receia negligenciar os seus deveres lendo vagarosa e ponderadamente, cultivando os seus próprios pensamentos, irá negligenciar os seus deveres de qualquer maneira, e por motivos piores. Talvez o nosso destino seja perder o emprego, a mulher, a casa. Se a leitura de um livro nos pode agitar tão profundamente, a ponto de nos fazer esquecer as nossas responsabilidades, é porque estas últimas não têm grande significado para nós. Nesse caso, tínhamos responsabilidades maiores. Se tivéssemos confiado nos nossos impulsos íntimos, teríamos seguido até um terreno mais firme, no qual ficaríamos numa posição de vantagem. Mas tivemos medo de uma voz que murmurasse: «Volta aqui! Bate a esta porta! Entra!» Tivemos medo de nos vermos despojados e abandonados: Pensámos em segurança em vez de pensarmos numa nova vida, em novos domínios de aventura e de exploração.

Este é um mero exemplo do que pode acontecer, ou não acontecer, ao lermos um livro. Se o aplicarmos às múltiplas oportunidades que a vida constantemente nos oferece, será fácil ver por que motivo os homens não são capazes, não só de se tornarem heróis, mas mesmo simples indivíduos. A forma como lemos um livro é a mesma forma como lemos a vida. Maeterlink, a quem me referi há pouco, escreve com tanta profundidade e de uma maneira tão atraente sobre insectos, flores, estrelas, sobre o próprio espaço, como sobre os homens e as mulheres. Para ele, o mundo é um todo contínuo, interactivo e intermutável. Não há muros nem barreiras. Não há morte em nenhum lugar. Um momento do tempo é tão rico e completo como dez milhares de anos. Na verdade, trata-se de uma forma de pensar magnífica!»


O pilha fez um ano de vida no passado dia 21, e entre períodos mais férteis e outros de pousio, por aqui se tem falado muito de livros, do mundo que os rodeia, das pessoas que neles vivem.

Quem aqui em cima fala é Henry Miller, excerto de "Os Livros da Minha Vida", o livro que mais me marcou neste 2004, neste ano de pilha.

O desafio aqui fica: quais os vossos livros deste ano? Editados em 2004 (ou não), a descoberta de um autor, de uma colecção de livros, de uma editora, o que mais vos marcou neste ano de livros pilhados (oferecidos e partilhados) pode ser depositado no espaço de comentários mesmo aqui por baixo, ou enviado para a nossa nova morada: pilhalivros@yahoo.com.

Até já :)

quarta-feira, dezembro 15, 2004

A Terrível Impostura

Porque a verdade tem muitas versões



A Terrível Impostura, de Thierry Meyssan, da Frenesi, 240 páginas, pvp: 15€

conversas com Agostinho da Silva

A.S. - (...)
Bem, mas o que é que Camões diz? Camões diz que se pode, ao mesmo tempo, estar-se preso no Tempo e no Espaço mas pairar acima desses dois condicionalismos com uma noção de Eternidade e com uma noção de não-Espaço, de se poder dominar tudo quanto é o universo do Espaço. Estar lá e ele estar cá, deste lado.

V.M. - Mas quando pode acontecer isso?
A.S. - Quando o Homem é capaz, ou por inspiração alheia ou, vamos lá dizer, pela cabeça dele, de produzir uma obra que pode ser uma obra de literatura, como Camilo; pode ser uma obra científica, como uma nova teoria da Física; ou até uma ideia mística de qualquer espécie de religião que também paira no Eterno.
Quando encontramos um grande poema, quando deparamos com uma grande teoria científica ou um grande arrebatamento místico, isso é da Eternidade e do não-espacial. Tanto é grego como é português, tanto é português como é chinês...
Voltemos, pois, a Camilo Castelo Branco e digamos que o seu destino era esse, de escrever para comer.
Em primeiro lugar, era assim tão ruim?
Existe outra maneira de ver a coisa, dizendo assim: provavelmente se Camilo fosse rico ele tinha-se abandonado ao jogo do bilhar, ou dedicado a namorar meninas ou entreter-se a andar à pancada e não se tinha aplicado a escrever como escreveu.
Não temos a certeza de que as condições a que um homem é submetido na sua vida ou num certo ponto da História não seja a mesma coisa que faz com que espremamos a pasta dos dentes para poder lavar os dentes.

V.M. - O mesmo caso pode-se colocar para Fernando Pessoa?
A.S. - Se Pessoa tivesse sido rico, com amigos e com família, bem instalado numa casa, em lugar de andar errante e de comer pessimamente, será que teria produzido a poesia, os heterónimos, a prosa e o pensamento que produziu?
Nós apenas sabemos o que aconteceu pois aquilo que teria acontecido nunca sabemos. Em História, apenas aquilo que sucedeu é passível de análise e de discussão e o que não sucedeu é uma fantasia e uma lição que nós podemos ter mas sem a certeza de ancorar em Terra.
O Camilozinho teve, por exemplo, por destino o ser obrigado a escrever e ele cumpriu esse destino, o destino de ter fome, o de ter dificuldades sociais, mas ao mesmo tempo em cada livro que escrevia, ou em quase todos os livros que escreveu, ele pairou acima do seu destino.
Hoje o que importa para um homem que leia Camilo e não esteja interessado na sua biografia, não são propriamente as desgraças sucedidas a Camilo mas a beleza extraordinária que ele era capaz de colocar num livro.

(das páginas 35 a 37)

conversas com Agostinho da Silva, por Victor Mendanha, da Pergaminho, Novembro de 1994 (10ª reimpressão, 2002), 123 páginas, pvp: 6,50€

terça-feira, dezembro 14, 2004

Autobiografia sumária

Não acha que escrever textos cómicos é uma actividade muito triste? Talvez seja porque dá imenso trabalho ter graça. Concorda?

Sim, mas - até por pudor - não gostaria de fazer a rábula do humorista angustiado.
Há um poema da Adília Lopes que se chama "Autobiografia sumária". São só três linhas:

Os meus gatos
gostam de brincar
com as minhas baratas

Sempre achei que isto era uma bela metáfora sobre o processo de fazer humor: aquilo que em nós é felino, perspicaz e arguto, põe-se a brincar com o que temos de mais obscuro e repelente. Uma vez perguntei à Adília Lopes se era isso que ela tinha querido dizer com o poema. Ela respondeu: "Não. O que se passa é que eu, às vezes, tenho baratas na cozinha, e os meus gatos gostam muito de brincar com elas."
Toma que é para não te armares em esperto.


excerto da entrevista de Leonor Pinhão a Ricardo Araújo Pereira, publicada na revista os meus livros nº 22, de Dezembro 2004.


O pilha sugere a Obra completa de Adília Lopes (e as incompletas também) e os anúncios do Montepio Geral.

domingo, dezembro 12, 2004

O MAR, A MÃE - Marie Darrieussecq

"O Mar, A Mãe pode ser considerado como o "negativo" do romance anterior da autora, O Nascimento dos Fantasmas, no qual um marido desaparece quando sai para comprar pão. Se nesse texto a descrição se ocupa das emoções da mulher face a essa ausência inesperada, no presente livro é o próprio desaparecimento que invade todos os limites da narrativa, consagrando-se como figura de primeiro plano."

Quando li estas palavras, e como já tinha lido "O Nascimento dos Fantasmas", pensei: "olha, até que é uma boa ideia". Má ideia foi ter comprado o livro.

A acção decorre num extrema confusão, sem um fio condutor. O aparecimento dos personagens surgem sem qualquer introdução, e como não há diálogos, lemos as primeiras linhas de cada parágrafo a tentar adivinhar quem está a pensar o quê. Durante todo o livro não nos é dado a conhecer o estado de espírito e os sentimentos da personagem principal (a desaparecida), e terminamos o livro sem perceber o porquê desta fuga. Igualmente mal explorados são os outros dois personagens principais (a filha da desaparecida e o detective), que teriam muito a dizer ao verem-se inseridos nesta história. A escritora limita-se a descrever o que as personagens veêm, e as pessoas que conhecem, mas a desorganização da escrita é incómoda e, por vezes, irritante.

Se alguém quiser pegar na ideia desta história (que ainda me parece boa), tente ser um bocadinho mais exigente consigo próprio.

"O Mar, A Mãe", de Marie Darieussecq (tradução de Maria do Rosário Mendes), 1ª Edição (2001), Edições Asa, 95 págs., pvp: 2.50€

quarta-feira, dezembro 08, 2004

Prendas de Natal

Dizia assim um vendedor de uma editora num destes dias:
- Quantos mais Natais andaremos a vender os mesmos livros?
Há aqueles livros que vendem o ano inteiro, mas que têm um lugar cativo nas compras de todos os portugueses, assim que nos começamos a sentir como um velhinho de barbas brancas vestido de robe vermelho.

Gabriel García Márquez, Nicholas Sparks, Luis Sepúlveda, "O Perfume" (Patrick Süskind), "As Velas Ardem Até ao Fim" (Sándor Márai), "Equador" (Miguel Sousa Tavares) e outros que tais, são as escolhas óbvias de quem quer oferecer espírito natalício em forma de livro. Na dúvida, oferece-se algo de que todos (?) gostam.

E aí, este Natal, há algo novo. Poderia pensar-se que o fenómeno estava gasto, que já todos tinham lido, que não haveria um único português sem um exemplar em casa. Estava enganado. Na dúvida, oferece-se "O Código Da Vinci". Saem mais depressa do que entram e não há outro "best-seller" que lhe faça frente.

Pode perguntar-se «Será que o Código DaVinci já vendeu mais exemplares do que o Código Civil?». Faltava a edição ilustrada (já aí está), mas ainda falta uma edição para crianças, agendas, livros de receitas, colecções de cromos, banda-desenhada, e porque não, "O Código Da Vinci para Advogados e Juízes". Se não vendeu mais que o Código Civil, para lá caminha rapidamente, com uma pequena ajuda do Pai Natal.