A.S. - (...)
Bem, mas o que é que Camões diz? Camões diz que se pode, ao mesmo tempo, estar-se preso no Tempo e no Espaço mas pairar acima desses dois condicionalismos com uma noção de Eternidade e com uma noção de não-Espaço, de se poder dominar tudo quanto é o universo do Espaço. Estar lá e ele estar cá, deste lado.
V.M. - Mas quando pode acontecer isso?
A.S. - Quando o Homem é capaz, ou por inspiração alheia ou, vamos lá dizer, pela cabeça dele, de produzir uma obra que pode ser uma obra de literatura, como Camilo; pode ser uma obra científica, como uma nova teoria da Física; ou até uma ideia mística de qualquer espécie de religião que também paira no Eterno.
Quando encontramos um grande poema, quando deparamos com uma grande teoria científica ou um grande arrebatamento místico, isso é da Eternidade e do não-espacial. Tanto é grego como é português, tanto é português como é chinês...
Voltemos, pois, a Camilo Castelo Branco e digamos que o seu destino era esse, de escrever para comer.
Em primeiro lugar, era assim tão ruim?
Existe outra maneira de ver a coisa, dizendo assim: provavelmente se Camilo fosse rico ele tinha-se abandonado ao jogo do bilhar, ou dedicado a namorar meninas ou entreter-se a andar à pancada e não se tinha aplicado a escrever como escreveu.
Não temos a certeza de que as condições a que um homem é submetido na sua vida ou num certo ponto da História não seja a mesma coisa que faz com que espremamos a pasta dos dentes para poder lavar os dentes.
V.M. - O mesmo caso pode-se colocar para Fernando Pessoa?
A.S. - Se Pessoa tivesse sido rico, com amigos e com família, bem instalado numa casa, em lugar de andar errante e de comer pessimamente, será que teria produzido a poesia, os heterónimos, a prosa e o pensamento que produziu?
Nós apenas sabemos o que aconteceu pois aquilo que teria acontecido nunca sabemos. Em História, apenas aquilo que sucedeu é passível de análise e de discussão e o que não sucedeu é uma fantasia e uma lição que nós podemos ter mas sem a certeza de ancorar em Terra.
O Camilozinho teve, por exemplo, por destino o ser obrigado a escrever e ele cumpriu esse destino, o destino de ter fome, o de ter dificuldades sociais, mas ao mesmo tempo em cada livro que escrevia, ou em quase todos os livros que escreveu, ele pairou acima do seu destino.
Hoje o que importa para um homem que leia Camilo e não esteja interessado na sua biografia, não são propriamente as desgraças sucedidas a Camilo mas a beleza extraordinária que ele era capaz de colocar num livro.
(das páginas 35 a 37)
conversas com Agostinho da Silva, por Victor Mendanha, da Pergaminho, Novembro de 1994 (10ª reimpressão, 2002), 123 páginas, pvp: 6,50€
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