E como foi esse tal tratamento que tira o mal do corpo, Alex?
«Esluchi vozes, diziam pronto pronto pronto assim a uma certa distância, e depois mais perto, e então é que houve um chum, uma espécie de leve zumbido, como se tivessem ligado coisas. E as luzes apagaram-se. E lá estava o Vosso Humilde Narrador e Amigo sozinho, sentado, na escuridão, na sua assustada lidão-ai-dão, sem se poder mexer nem fechar os glezes, nem mais nada. E então, irmãos, começou a sessão de cinema. Começou com música de fundo muito gronca que saía dos altifalantes, muito violenta e desafinada. E depois apareceram as imagens no ecrã, sem título nem genérico. O que apareceu foi uma rua, uma rua qualquer de uma cidade qualquer, e era uma notche realmente escura com os candeeiros públicos todos acesos. Era a modos que uma espécie de bom trabalho de nimas profissional, muito bem feito, sem nada daqueles saltos e emendas que aparecem, por exemplo, quando videamos um desses filmes pornográficos na casa de alguém, numa rua escondida. A música barulhava sempre, assim a modos que sinistra. Videou-se então um velho, vinha a descer a rua, muito estérrico, e aí saltam para cima daquele veco estérrico dois máchicos, vestidos ao rigor da moda desse tempo (ainda eram calças justas, mas já não se usava gravatão era mesmo gravata) e começam a traquinar com ele. Esluchiam-se os gritos e gemidos, tudo realista, até se ouvia a respiração pesada e ofegante dos dois máchicos que o atolchocavam. Fizeram daquele veco estérrico um verdadeiro pudim, batendo craque craque craque com as rucas fechadas, rasgaram-lhe os pletos e acabando depois ao pontapé aquele nagóio (todo vermelho de crove, deitado na grazénica lama da sarjeta), e depois fugiram muito escorre. E veio o grande plano da galiva deste espancado e estérrico veco e via-se escorrer o crove com uma bela cor vermelha. É estranho como as cores do chamado mundo real só parecem realmente reais quando se videiam no ecrã.» pág. 125, 126
Se um jovem não demontra as capacidades para respeitar e ordem e moral vigentes na sociedade, cabe a esta rectificar o mal. E se for possível eliminar o mal por completo, impedir que ele se manifeste e “produzir” um ser humano que só pratique a bondade, porquê pensar duas vezes?
«- Talvez não seja tão maravilhoso ser bom, 6655321zinho! Talvez seja horrível ser bom. E quando te digo isto, compreendo como isto te pode parecer contraditório. Sei que vou passar muitas noites em branco a pensar nisto. Quais os desígnios de Deus? Quererá Ele o Bem, ou a escolha do Bem? Um homem que escolhe o Mal, será por acaso ou de certo modo, melhor do que um homem a quem impõem o Bem?» pág. 117, 118
Questões para Alex tentar responder, se o deixarem escolher, se o corpo permitir, se lhe continuar a apetecer um pouco do velho mete-e-tira ao som de Ludwig van, num futuro de muita paz e oferecer a outra face, ou num mundo esculpido com a briva corta-vozes...
A Laranja Mecânica, de Anthony Burgess (trad. José Luandino Vieira), edição Bibliotex (para o Diário de Notícias), colecção Os Livros do Cinema nº 2, Março 2004, 222 pág., disponível nos quiosques por €4,90 juntamente com o nº 1 (Forrest Gump)
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