TENTATIVA DE NUDEZ
Quem sou? Como vivi? Que espero ainda?
Se escrevo, é justamente porque me interessa saber quem sou. Escrevo desde sempre - quase posso dizê-lo: antes de escrever no papel escrevia no meu vazio já povoado de palavras, de imagens. Foi esse o meu escreviver: procurar-me. No entanto, em dado momento da vida, no final da década de 50, a importância que os outros cada vez mais assumiam para mim reduziu algum tanto a importância que me atribuía. Tornei-me, de certo modo, um elo de uma cadeia que passa ao meu lado, que eu toco, que eu sinto, que vem dos confins da História e se projecta na Humanidade. Não me tornei sereno, não encontrei resposta para todas as perguntas, continuei a discutir comigo, com as minhas sombras, no meu estreito espaço humano, mas acompanhado, isto é, numa escala diversa. Tem menos importância agora quem sou do que aquilo que faço e não tanto o acto em si como o seu efeito, a sua ressonância num mundo em transformação. É claro que a escrita, a minha escrita desobedece a todos os programas. Por isso continua a ser para mim apaixonante escrever, medir-me com a palavra e na palavra, através dela acertar-me com o projecto que vivo, sem trair as raízes que já dispersei no espelho do inconsciente, a minha escrita. E aí está: o que ainda espero da vida, afinal, é poder escrever vivendo, com o corpo (amando e lutando), com essa parte do corpo a que chamamos espírito (repensando o mundo em mim, todos os minutos, todos os segundos do tempo de que ainda disponho).
Urbano Tavares Rodrigues, em O Gosto de Ler (1980)
Com 50 anos de vida literária comemorados em 2002 (quando lhe foi atribuído o Prémio Vida Literária pela Associação Portuguesa de Escritores), e mais de 70 livros publicados, Urbano Tavares Rodrigues é uma das maiores referências da literatura portuguesa. Este "Tentativa de Nudez" foi escrito em 1979 e está incluído em "O Gosto de Ler", livro de 1980 que reúne uma série de ensaios que analisam a obra de Luís de Sttau Monteiro, Luandino Vieira e Manuel Rui, entre outros, ou simplesmente falam do 25 de Abril ou do que o leva a escrever. Editado pela Nova Crítica e esgotado há muitos anos, tive a sorte de o encontrar num alfarrabista, o que me leva a deixar aqui uma questão, que tentarei aprofundar numa outra oportunidade: não haverá interesse das editoras dos nossos dias e dos próprios autores (ou seus herdeiros) em reeditar estas obras perdidas, que se transformaram entretanto em peças raras e tantas vezes impossíveis de encontrar? Ou o interesse passará por preservar essa característica de objecto raro, inacessível a tantos de nós?
Urbano Tavares Rodrigues completou 80 anos de vida em Dezembro último, mas não é isso que o impede de continuar a trazer até nós as palavras e as histórias do nosso contentamento. Prova disso é que o seu último livro foi publicado pouco antes, em Novembro, e traz-nos uma colecção de 21 contos que inclui "A Estação Dourada", que dá o nome à obra, e "God Bless America", que já tinha sido editado em nome próprio num volume ilustrado fotograficamente, alusivo à guerra no Iraque. Em "A Estação Dourada" podemos encontrar também "Elisa", a história de uma gata com «olhos cor de âmbar, ou castanho-dourados», e "Virás de Manhã com o Sol a Abril", em que se lê assim:
«Hás-de voltar, não duvido, nem que seja para uma visita de borboleta. Um instante de ti já é mel para a minha solidão. Não consigo nem quero calcular o que te há-de trazer. Um drama ou uma insignificância, tanto monta. Virás.»
(ainda um artigo/entrevista com Fernando Dacosta, e 3 perguntas sobre Nunca Diremos Quem Sois e God Bless America)
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