sexta-feira, janeiro 30, 2004

TRANSGRESSÃO - Uzma Aslam Khan

Como é que um livro como Transgressão é lido no Paquistão?
Os meus livros não são lidos no meu país. Transgressão foi publicado na Índia, com a chancela da Penguin, o que o impossibilita de ser distribuído no Paquistão. Dizem-me as autoridades que as obras de ficção provenientes da Índia não podem ser vendidas. Entram os livros académicos e os livros de História, mas não entram as histórias inventadas. Nunca ninguém ouviu falar em tal lei, o que me faz suspeitar de que se trata apenas de mais um exemplo da tensão entre os dois países por causa da questão de Caxemira. É só burocracia com o objectivo de arrecadar mais uns dinheiros. E, para mim, isto é muito desencorajante.

Num mundo em que o mercado do livro é sobretudo negócio, incomoda-a que os seus livros sejam vendidos (na Feira de Frankfurt, por exemplo) com o rótulo do exotismo?
Sei que os editores utilizam esse tipo de marketing, na minha opinião, absolutamente detestável. Digam-me: eu pareço exótica? Tenho olhos, boca, nariz e cabelo. Tenho tudo o que os outros têm. Os meus livros não falam do Islão, mas sim do Paquistão. Tal como um romance cuja acção decorre em Portugal não fala da Cristandade. Devemos parar de olhar o mundo a partir das lentes coloniais que o dividem entre Ocidente e Oriente porque, no passado, estas duas culturas sempre se fundiram. Passei agora três semanas em Itália e percebi que, de facto, existem muitas semelhanças entre os italianos e os paquistaneses. Ambos preconizamos, por exemplo, valores como os da família. Ambos falamos de um modo muito expressivo.

excerto de entrevista da autora de “Transgressão”, Uzma Aslam Khan, a Sara Belo Luís, publicada na revista Visão de 08/01/04

Transgressão, de Uzma Aslam Khan (trad. Maria Augusta Júdice), da Ambar, Setembro 2003 (1ª edição), 493 pág., pvp: 21€

Uzma Aslam Khan cresceu em Karachi, Paquistão. É autora de um outro romance anterior, The Story of Noble Rot (Penguin India, 2001). Ensinou língua e literatura nos EUA, em Marrocos e no Paquistão. Trabalha para uma ONG em Lahore, onde vive com o marido.
Trespassing (Trangressão) será publicado em todo o mundo em 2003, em diversas línguas. (informação retirada do livro)

«Porém, o que ele mais amava eram os autocarros. Um dia, tinha-o confessado acidentalmente. Os clientes desataram a rir, enquanto comiam supari.
- O sonho de qualquer homem é ter um carro, e tu sonhas com autocarros!
Passou a não revelar a ninguém os seus gostos.
Os autocarros eram tão enfeitados como os barcos, na feira anual da sua aldeia. Eram barcos que navegavam num mar sólido. O rapaz observava os desenhos, devorava as suas cores ricas, decorava os nomes das lojas que os faziam, todas em Qaddafi Town. Ficou a saber que ficava nos arredores da cidade, para leste e, assim que poupou dinheiro sufuciente, Salaamat meteu-se num desses autocarros.
(...) Salaamat não parava de perguntar ao condutor onde ficava Qaddafi Town. Por fim, o homem agarrou-lhe na manga da kurta e empurrou-o para fora do autocarro.
De joelhos a latejar, Salaamat entrou na primeira oficina de autocarros por que passou. Chamava-se: Handsome Body Maker.
Havia sete autocarros estacionados lá dentro, em diversos estádios de construção. Um homem grande saiu de um escritório, e perguntou-lhe o que queria com ar grosseiro.
- Eu... quero trabalho - respondeu Salaamat.
O homem virou-se para o escritório e gritou qualquer coisa incompreensível. Apareceram outros dois. O enorme, que era o Handsome, estendeu a palma da mão e abanou-a por baixo do queixo de Salaamat.
- Credo! Temos de agradecer ao Senhor por nos ter enviado o estrangeiro!
Apenas um dos outros, com a cabeça lisa como um ovo, desatou a rir. Tocou nos caracóis de Salaamat, e disse com uma voz estridente:
- Um rapaz giro como tu não deve ter dificuldade em arranjar trabalho - e, virando-se outra vez para o Handsome, acrescentou: - Tu és bonito, mas ele é giro.
(...)
Porém, o melhor aguardava-o na parte de trás. Aí estava a mulher mais bela que Salaamat vira. Tinha os olhos do tamanho da sua palma da mão, um nariz sensual e lábios parecidos com ameixas, meio escondidos por trás de um tecido fino que segurava numa mão pintada com henna. Na mão direita podia-se ler, Olha. Na esquerda, Mas Com Amor. E era exactamente isso que ela fazia com ele.» pág. 145, 146, 149

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