«"Tu não tens tomado conta dos teus anjos", diz Baldvin, o Rei do Império Britânico, a Páll, quando descobre que aquele rapaz esperto e audaz, nascido no dia em que a Islândia aderiu à NATO, trocara a infância e a família por uma existência naufragada entre as ruas de Reykjavík e o Hospital Psiquiátrico de Kleppur. Entre os seus companheiros, encontram-se Óli Beatle, às voltas com os direitos relativos às suas famosas composições musicais, e Viktor, cada vez mais profundamente imerso na pele de Hitler. As tragédias silenciosas e as aventuras atrevidas do subtil e espirituoso grupo de personagens de Gudmundsson iluminam o processo de isolamento e fragmentação de Páll, personagem central enquanto espectador e narrador da sua própria vida.»
"Anjos do Universo", de Einar Már Gudmundsson (trad. Gudlaug Rún Margeirsdóttir), Canguru, Abril 2003 (1ª ed.), 238p.
«Uma vez, andava eu com o cocar de penas na cabeça, consegui trazê-la para dentro da minha tenda de índio, sob o pretexto de que era um curandeiro.
Disse-lhe que a minha função era investigar todas as pragas que atacavam a aldeia e entregar um relatório ao chefe.
Stína entra dentro da tenda e deita-se de barriga para cima. As coxas são grandes e rechonchudas; ao tentar auscultar o seu ventre em busca de sons, a minha cabeça balouça como um barco em alto mar.
- Consegues ouvir alguma coisa? - pergunta Stína.
- Não - respondo. - Tens que tirar as calças.
As penas do cocar fazem-lhe cócegas no nariz e ela ri-se ao tirar as calças. Encosto o meu ouvido ao útero nu e fico à escuta, à procura de um ritmo.
- Consegues ouvir alguma coisa agora? - pergunta Stína.
- Sim, agora consigo - digo.
- Ouves o quê?
- Oiço o coração.
- Está aí? - pergunta Stína.
- Sim, está - respondo.
- Ainda bem - diz Stína -, ainda bem.
Stína ficou contente e, nos dias seguintes, estava sempre a perguntar-me se não queria ir para dentro da tendinha e ouvir o bater do coração.» p.50,51
«Numa altura qualquer, de noite ou de manhã cedo, vou a caminhar pela estrada para Keflavík; a viagem da minha casa até lá é um grande buraco negro.
Nem tão-pouco sei porque os meus sapatos desapareceram dos pés e as meias também. Estou descalço, mas ainda tenho o rádio portátil nas mãos, está sintonizado na Emissora das Forças Norte-Americanas.
Está chuva e nevoeiro. As musgosas extensões de lava escondem-se. Não se vê uma única montanha. Somente a estrada para Keflavík, encharcada pela chuva.
É o fim da noite ou de manhã muito cedo, e as poucas pessoas que passam por mim de carro devem pensar que eu sou um fantasma, um morto-vivo ressuscitado do cemitério de Hafnarfjördur, ou até o infame Fantasma de Stapi.
Nessa altura, pára junto de mim uma carrinha da polícia. Saltam lá de dentro dois agentes, que abrem as portas de trás. Não tento sequer pôr-me ao fresco, mas eles algemam-me na mesma. Com certeza que andavam à minha procura.
Ajudam-me a subr para dentro da carrinha e sento-me atrás, no banco lateral. O rádio ainda está ligado.
- Já o apanhamos - diz o condutor-
Um dos polícias vem sentado atrás comigo. É muito novo. Os dedos dos meus pés estão cor-de-rosa e azuis e pinga-me água dos cabelos. Mesmo assim, não me sinto frio nem molhado.
- Também vens? - Pergunto ao jovem polícia sentado à minha frente.
- Para onde? - diz.
- Para os Estados Unidos da América.
- E o que é que eu ia para lá fazer? - pergunta.
- Podias segurar o rádio portátil - digo.» p.158,159
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