«Nunca vi nada que não fosse lógico. Tudo tem uma lógica, muito embora esteja por vezes escondida. É a isso que chamamos o segredo das coisas. O que distingue os homens lúcidos dos inconscientes é que os primeiros procuram descobrir a lógica das coisas, ao passo que os segundos julgam que as coisas surgem por si próprias e procuram, não a sua lógica, mas a sua rima.» p.24
«Gonçalo entrara um dia, à hora do almoço, em casa do porteiro dum dos seus prédios. A família estava reunida em torno da mesa. A mãe e os filhos comiam batatas fritas e o pai o único bife. Fora-lhe impossível não comentar.
- Então a carne é toda para si, João?
A mulher saltara logo a defender a casa portuguesa:
- Carne é para quem trabalha, Sr. Doutor.
O porteiro passara a manhã sentado numa poltrona, no átrio do prédio, lendo O Século, enquanto a mulher varrera a escada, limpara a casa, cozinhara e olhara pelas crianças.
- Parece-me que a Maria é quem mais trabalha nesta casa...
O porteiro, de pé, com o guardanapo na mão, esclarecera a situação:
- O marido sou eu, Sr. Doutor.» p.29,30
«- A cidade, vista à noite, é estranha. Já pensou no que farão em casa todos esses tipos que a gente vê na rua, com emblemas do Benfica na lapela? Uns emblemas feitos de pedrinhas?
- Sou um deles.
- É? E que faz você à noite, em casa?
Hoje era capaz de responder. À noite, em casa, repetimos o que fizemos durante o dia: nada. À noite, em casa, continuamos a esperar pela morte e, quando ela se aproxima, compreendemos que devíamos ter feito mais qualquer coisa.» p.144
"Angústia para o Jantar", de Luís de Sttau Monteiro, areal editores, Outubro 2002, 205p., pvp.13€
Estas são personagens que vivem diariamente com o medo: da morte e da vida adiada, de que os 2500$00 não cheguem até ao fim do mês, que a fortuna e o estatuto já não passem para a geração seguinte, que a primeira vez nunca mais volte a acontecer. Isto num cenário em que todas as posições estão bem definidas, patrões e empregados, senhoras e pegas, em que a palavra “revolução” das conversas da malta tinha um sentido diferente do que lhe conhecemos hoje.
Ao lermos esta obra, não é de espantar que Luís de Sttau Monteiro tenha sido várias vezes preso pela PIDE. Não há sequer referências directas ao regime político de então: é um “Isto já não chega aos nossos filhos...” que se lê aí e se sente em todo o livro. No fundo, “quem vence as batalhas é quem está dentro do seu tempo”.
Um grande bem-haja a quem me sugeriu a sua leitura. Angústia para o Jantar é uma das primeiras obras do extenso legado que Luís de Sttau Monteiro nos deixou.
«Levantou-se, deu a volta ao sofá e aproximou-se da janela. Lá fora a chuva parara. Por entre uma aberta nas nuvens via-se o Sol, um Sol da cor do aço frio, e indiferente. Durante uns momentos, telhados molhados reflectiram a luz acinzentada do fim do dia. Depois, subitamente, as nuvens juntaram-se e recomeçou a chover. Lá em baixo, na rua escura e suja, passaram dois cães a correr, e ao fundo, à esquina, surgiram uns vultos curvados que logo desapareceram pela porta da taberna.
Teresa voltou a sentar-se. Parecia-lhe que acabara de ver o futuro. A rua escura e suja, a luz acinzentada e os vultos lá ao longe, à porta da taberna, constituíam uma antevisão do mundo pelo qual se batiam o Pedro e os seus amigos. Sem que soubesse porquê, voltou a ter medo.» p.151
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