sexta-feira, janeiro 30, 2004

TRANSGRESSÃO - Uzma Aslam Khan

Como é que um livro como Transgressão é lido no Paquistão?
Os meus livros não são lidos no meu país. Transgressão foi publicado na Índia, com a chancela da Penguin, o que o impossibilita de ser distribuído no Paquistão. Dizem-me as autoridades que as obras de ficção provenientes da Índia não podem ser vendidas. Entram os livros académicos e os livros de História, mas não entram as histórias inventadas. Nunca ninguém ouviu falar em tal lei, o que me faz suspeitar de que se trata apenas de mais um exemplo da tensão entre os dois países por causa da questão de Caxemira. É só burocracia com o objectivo de arrecadar mais uns dinheiros. E, para mim, isto é muito desencorajante.

Num mundo em que o mercado do livro é sobretudo negócio, incomoda-a que os seus livros sejam vendidos (na Feira de Frankfurt, por exemplo) com o rótulo do exotismo?
Sei que os editores utilizam esse tipo de marketing, na minha opinião, absolutamente detestável. Digam-me: eu pareço exótica? Tenho olhos, boca, nariz e cabelo. Tenho tudo o que os outros têm. Os meus livros não falam do Islão, mas sim do Paquistão. Tal como um romance cuja acção decorre em Portugal não fala da Cristandade. Devemos parar de olhar o mundo a partir das lentes coloniais que o dividem entre Ocidente e Oriente porque, no passado, estas duas culturas sempre se fundiram. Passei agora três semanas em Itália e percebi que, de facto, existem muitas semelhanças entre os italianos e os paquistaneses. Ambos preconizamos, por exemplo, valores como os da família. Ambos falamos de um modo muito expressivo.

excerto de entrevista da autora de “Transgressão”, Uzma Aslam Khan, a Sara Belo Luís, publicada na revista Visão de 08/01/04

Transgressão, de Uzma Aslam Khan (trad. Maria Augusta Júdice), da Ambar, Setembro 2003 (1ª edição), 493 pág., pvp: 21€

Uzma Aslam Khan cresceu em Karachi, Paquistão. É autora de um outro romance anterior, The Story of Noble Rot (Penguin India, 2001). Ensinou língua e literatura nos EUA, em Marrocos e no Paquistão. Trabalha para uma ONG em Lahore, onde vive com o marido.
Trespassing (Trangressão) será publicado em todo o mundo em 2003, em diversas línguas. (informação retirada do livro)

«Porém, o que ele mais amava eram os autocarros. Um dia, tinha-o confessado acidentalmente. Os clientes desataram a rir, enquanto comiam supari.
- O sonho de qualquer homem é ter um carro, e tu sonhas com autocarros!
Passou a não revelar a ninguém os seus gostos.
Os autocarros eram tão enfeitados como os barcos, na feira anual da sua aldeia. Eram barcos que navegavam num mar sólido. O rapaz observava os desenhos, devorava as suas cores ricas, decorava os nomes das lojas que os faziam, todas em Qaddafi Town. Ficou a saber que ficava nos arredores da cidade, para leste e, assim que poupou dinheiro sufuciente, Salaamat meteu-se num desses autocarros.
(...) Salaamat não parava de perguntar ao condutor onde ficava Qaddafi Town. Por fim, o homem agarrou-lhe na manga da kurta e empurrou-o para fora do autocarro.
De joelhos a latejar, Salaamat entrou na primeira oficina de autocarros por que passou. Chamava-se: Handsome Body Maker.
Havia sete autocarros estacionados lá dentro, em diversos estádios de construção. Um homem grande saiu de um escritório, e perguntou-lhe o que queria com ar grosseiro.
- Eu... quero trabalho - respondeu Salaamat.
O homem virou-se para o escritório e gritou qualquer coisa incompreensível. Apareceram outros dois. O enorme, que era o Handsome, estendeu a palma da mão e abanou-a por baixo do queixo de Salaamat.
- Credo! Temos de agradecer ao Senhor por nos ter enviado o estrangeiro!
Apenas um dos outros, com a cabeça lisa como um ovo, desatou a rir. Tocou nos caracóis de Salaamat, e disse com uma voz estridente:
- Um rapaz giro como tu não deve ter dificuldade em arranjar trabalho - e, virando-se outra vez para o Handsome, acrescentou: - Tu és bonito, mas ele é giro.
(...)
Porém, o melhor aguardava-o na parte de trás. Aí estava a mulher mais bela que Salaamat vira. Tinha os olhos do tamanho da sua palma da mão, um nariz sensual e lábios parecidos com ameixas, meio escondidos por trás de um tecido fino que segurava numa mão pintada com henna. Na mão direita podia-se ler, Olha. Na esquerda, Mas Com Amor. E era exactamente isso que ela fazia com ele.» pág. 145, 146, 149

terça-feira, janeiro 27, 2004

O AFINADOR DE PIANOS - Daniel Mason

É conhecido que passou um ano na Tailândia a estudar a malária - e essa foi evidentemente a inspiração para o cenário do livro. Mas quanto ao piano, como lhe surgiu a ideia do piano?
O livro começou apenas com a imagem de um piano na selva. Gostava de me recordar quando é que pensei nisto pela primeira vez, mas honestamente não me lembro. Com frequência me impressionaram as histórias de colonizadores ou viajantes que transportavam coisas do ocidente para a selva, há por exemplo a história de Joseph Rock, um botânico norte-americano, que levou uma banheira para a Indochina. Ou a ópera em Manaus, no Brasil. Um piano parecia-me um símbolo maravilhosamente complexo do colonialismo; pode objectar-se a muitos aspectos do colonialismo europeu, mas creio que a beleza de pelo menos alguma música europeia é universal. Por isso, tudo começou por um piano; escrevi uma página de uma história sobre um pianista na Birmânia, e depois decidi que um afinador de pianos era uma personagem mais interessante, uma pessoa que é chamada a fazer um trabalho, e que tem por isso espaço para mudar enquanto personagem. Claro que teria de colocar o afinador de pianos nalgum lado. Pode ser muito interessante pôr um piano nas selvas da Birmânia, mas esse piano não consegue escapar à natureza, à humidade. À medida que ia escrevendo, fui ficando cada vez mais fascinado pelo processo de afinação de pianos. A princípio tinha pensado nisso como uma tarefa relativamente mecânica, mas quanto mais escrevia, e com quantos mais afinadores ia falando, mais percebia que o acto de afinação é realmente uma coisa maravilhosa. Um compositor dá a música, um pianista a actividade mecânica, e o piano o mecanismo, mas um afinador é aquele cujo trabalho transforma as motivações humanas e a máquina num som belo.

A pergunta-cliché: existe algo ainda que vagamente autobiográfico neste livro? Isto é, em termos de experiência: por exemplo, a dificuldade em regressar a casa?
Tenho a certeza de que muita da história veio de algum lado muito pessoal. Tenho uma grande dificuldade em ficar muito tempo num mesmo lugar, e sempre adorei viajar. Especificamente, encantaram-me a história e as culturas do Sueste Asiático, e muita da minha escrita foi uma tentativa para explorar este mundo que tinha visto e do qual depois me despedi, que era tão diferente do meu. Inspirei-me na “Odisseia”, como disse, e na ideia de nunca querer que uma viagem termine. Um dos meus autores favoritos é Bruce Chatwin, provavelmente pelo facto de ele ter enunciado de maneira tão bela a necessidade humana de continuar a vaguear. Penso que é isto que Edgar sente, logo a partir do momento em que principia a sua viagem, e é provavelmente o que senti e continuo a sentir.

excerto da entrevista do autor de O Afinador de Pianos, Daniel Mason, a João Carlos Silva, publicada no Mil Folhas, suplemento do jornal Público, de 24/01/04

O Afinador de Pianos, de Daniel Mason, edições Asa, Novembro 2003, 352 pág., pvp:16€

passagem do livro:
«Estranhamente, desde que parti de Mandalay, vi mais do que teria imaginado e compreendi mais sobre o que vi, mas ao mesmo tempo esta sensação de estar incompleto agudiza-se. A cada dia que passa, espero por uma resposta, como um bálsamo ou água que mate a sede.»

segunda-feira, janeiro 26, 2004

Agenda 27 de Janeiro

- Integrado no ciclo Nhâ terra, Nhâ cretcheu, decorre hoje o colóquio A Literatura Cabo-Verdiana. Contará com a participação de Armandina Maia, Elsa Rodrigues dos Santos, José Luís Hopffer Almada, Henrique Teixeira de Sousa, Dina Salústio e Corsino Fortes. Fnac Chiado (Lisboa), 18h30.


Vagabundos de Nós, de Daniel Sampaio, da Caminho. Apresentação da mais recente obra de Daniel Sampaio. Biblioteca de Loulé, 18h30.


- 2ª sessão de "Os Livros em Volta" deste ano, dedicada à Ficção Estrangeira. Com moderação de Mário Jorge Torres e com a presença de Fernanda Gil Costa, Frederico Lourenço, Maria Alzira Seixo e Paulo Osório. A partir das 18h30, no Pequeno Auditório da Culturgest, em Lisboa.
Livros escolhidos:
Odisseia, de Homero, da Cotovia
Eneida, de Vergílio, da Bertrand
Em busca do tempo perdido - vols. 1, 2, 3 e 4, de Marcel Proust, da Relógio d'Água
O Salteador, de Robert Walser, da Relógio d'Água

Germano Almeida em basco e castelhano, com o mar da Laginha como pano de fundo

Dois livros de Germano Almeida – O testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo e Estóreas dentro de Casa – acabam de ser publicados no País Basco, pela editora Txalaparta. “Napumoceno da Silva Araújo jaunarem testamentua” saiu em Novembro do ano passado e a mesma editora basca volta de novo à cena com Estóreas dentro de Casa.

Aquele escritor, que se encontra neste momento em Espanha a participar, em Barcelona, numa série de actividades promocionais da sua obra, tem um outro livro seu traduzido, também recentemente, para o castelhano, “A ilha fantastica”.

Entretanto, A Semana Online sabe que Germano Almeida tem um novo livro de estóreas, que deverá sair no primeiro trimestre do próximo ano, provavelmente em Abril, em Cabo Verde e Portugal. “No mar do Laginha” assim se deverá chamar o próximo título daquele que é considerado o mais produtivo escritor cabo-verdiano de todos os tempos.

notícia publicada no diário caboverdiano A Semana

em Portugal, Germano Almeida tem a sua obra publicada na Caminho e no Círculo de Leitores.

sábado, janeiro 24, 2004

ISLANDE l'île rebelle - O. Grunewald e B. Gilbertas

Encontrar este livro (que nem sabia existir) deu-me um gozo enorme, pela simples razão de eu ser um apaixonado pela Islândia, e porque é de facto muito difícil encontrar livros no mercado português sobre este país ainda tão desconhecido.
Olivier Grunewald, fotógrafo profissional, explorador das mais belas paisagens do nosso planeta, e Bernardette Gilbertas, geógrafa especializada no estudo das formas de relevo, hoje em dia mais dedicada à escrita e ao jornalismo na área da natureza e da ecologia, juntaram-se para produzir este belo álbum. Um livro repleto de belas fotografias, que, atrevo-me a dizer, não exigiram muito do seu autor para serem tão esplendorosas, dada a beleza natural do país. Para além disso, legendas a cada fotografia e textos abrangentes, que analisam vários aspectos do país (sociais, históricos, geológicos, etc), completam-no para obtermos um precioso objecto de colecção.

Islande l'île rebelle, de Olivier Grunewald e Bernardette Gilbertas, da Nathan, Outubro 2001, 192 pág.


BLOGS - Paulo Querido e Luís Ene

«Caro leitor: um livro sobre blogues é uma obra ingrata. A blogosfera, o universo da edição pessoal, está em mutação constante. Tudo muda de um dia para o outro: os blogs que estão na berra, a forma de os editar, novos mecanismos para melhorar o aspecto e as funcionalidades, as reacções do público...»

Assim começa este livro sobre blogs (já agora, blogs ou blogues?), de que não poderíamos deixar de falar, num blog sobre livros...
De facto, talvez o maior problema de todos os livros directa ou indirectamente relacionados com a informática é a sua rápida desactualização, tanto na tecnologia como nos protagonistas. Assim, e acautelando-se um pouco, vemos que apenas 19 páginas deste livro são dedicadas aos aspectos técnicos da criação e manutenção de um blog. Mas isso não é algo que lhe retire valor, já que o programa apresentado (Blogger, onde o pilha-livros está alojado) é de muito fácil utilização, e mesmo alguém que nada perceba de informática ou internet cria facilmente o seu blog com algumas dicas de um amigo.
Antes disso, é apresentada uma definição do que se entende por um blog, a sua evolução até aos dias de hoje, tanto a nível mundial como nacional, e é debatida a relação entre blogs e jornalismo.
Nos dois maiores capítulos do livro, podemos ler entrevistas com alguns bloggers que os autores consideraram destacar-se no universo dos blogs portugueses, e um pequeno guia de blogs nacionais, com uma curta descrição e apresentação gráfica de cada um.

Blogs, de Paulo Querido e Luís Ene, edição Centro Atlântico, Outubro de 2003 (1ªed.), 152p., pvp:14,71€

O sub-título de um dos blogs apresentados diz: “As ideias brotam livres da nossa mente. Temos que evitar que a folha de papel as aprisione.” Este é um guia simpático, talvez mais apelativo a quem já esteja por dentro do mundo dos blogs, onde se pode encontrar várias moradas de blogs à espera de serem lidos e comentados, e onde também há espaço para debate e reflexão sobre o impacto na sociedade e nas nossas vidas pessoais.
Voltando ao início desta crónica, e prova de que a blogosfera está em constante mutação, vejamos o exemplo do blog Ene Coisas, de um dos autores deste livro, Luís Ene. Nele podemos ler a inscrição “Atenção. Este blog está parado”, com a última e derradeira entrada datada de 8 de Janeiro...
Com uns ou outros protagonistas, a blogosfera é um mundo muito rico, mesmo ali à espera de ser explorado.

sexta-feira, janeiro 23, 2004

Agenda 23 de Janeiro

Vale a Pena ser Cientista? II, de Jorge Massada, da Campo das Letras. Apresentação do 2º volume de Vale a Pena ser Cientista?, livros que reúnem depoimentos de destacadas figuras do meio científico português, em entrevistas conduzidas por Jorge Massada. A apresentação será do Prof. Sobrinho Simões e contará com a presença do Prof. Manuel Paiva. Fnac Norteshopping (Porto), 21h30.

Vagabundos de Nós, de Daniel Sampaio, da Caminho. Apresentação da mais recente obra de Daniel Sampaio. Livraria Fonte de Letras (Montemor-o-Novo), 21h30.

quarta-feira, janeiro 21, 2004

Agenda 22 de Janeiro

Prazer em Pó, de Eduardo Brum, da Europa-América. Lançamento da última obra de Eduardo Brum, com apresentação de Eduardo Prado Coelho e com a presença do autor, que dará uma sessão de autógrafos no final. Fnac Colombo (Lisboa), 18h30.

- Lançamento de O Desejo de Teatro, de Isabel Alves Costa, da Afrontamento. Com apresentação de António Pinto Ribeiro, a sessão decorrerá na livraria Ler Devagar (Lisboa), a partir das 21h30.

terça-feira, janeiro 20, 2004

Volta "Os Livros em Volta"

Recomeçam hoje as conversas à volta de livros, com palco na Culturgest. De hoje, 20 de Janeiro, até 16 de Março, poderemos assitir e participar em 8 conversas sobre outros tantos temas, desde a Ficção Portuguesa até à História e Ciências Sociais.
A sessão de hoje será dedicada ao debate e à descoberta de obras de Ficção Portuguesa, com moderação de Pedro Mexia. Ao contrário da edição anterior, não foi divulgada qualquer lista de livros a ser analisados ou de convidados para cada sessão.
Sempre às terças às 18h30, o encontro está marcado para o Pequeno Auditório da Culturgest.

Programa completo, com indicação dos moderadores:
20/01: Ficção Portuguesa - Pedro Mexia
27/01: Ficção Estrangeira - Mário Jorge Torres
03/02: Artes - António Pinto Ribeiro
10/02: Poesia - Fernando Pinto do Amaral
17/02: Literatura para a Infância e Juventude - Alice Vieira
02/03: Ensaio - Eduardo Prado Coelho
09/03: Divulgação Científica - José Mariano Gago
16/03: História e Ciências Sociais - António Costa Pinto

segunda-feira, janeiro 19, 2004

O LIVRO DAS IGREJAS ABANDONADAS - Tonino Guerra

«O VALE DAS IGREJAS BRANCAS
Eram doze as igrejas brancas que sobressaíam dentro do vale. Primeiro quebraram-se os vidros das janelas, depois todas as portas apodreceram e os pregos baloiçavam no meio da carne infecta das tábuas cruzadas que estavam cheias de buracos.
Desfizeram-se naquele ano que choveu todo o verão até à primeira feira de Outubro. Os pregos sustinham bocados de madeira que formavam uma transparência que mais parecia uma teia de aranha. Um dia de grande vento, os pregos começaram a voar e não ficou nem sequer a sombra das portas.
Quando os pardais se puseram a fazer balbúrdia lá dentro, o ar ficou cheio de penas que caíam no chão como se tombassem das asas dos anjos em voo no tecto.
De repente, uma noite, as igrejas ruíram todas juntas.
Um montanhês que vive abaixo de Badia ergue a mão direita com o cajado e aponta lá no fundo do vale uns montões de pedras e caliça brilhantes como baba de caracóis.» p.23 (La vala dal cisi biènchi)

"O Livro das Igrejas Abandonadas", de Tonino Guerra (trad. José Colaço Barreiros), Assírio & Alvim, Maio 1997, 58p.

Estas igrejas são mais que casas de deus. Alguém soprou poesia para dentro delas. Há quem peça milagres, quem deles fuja, há velas em devoção, mãos que nem borboletas, e delas mais que um milhão.
As suas histórias são tão curtas que temos que voltar atrás uma e outra vez, apetece imaginar as suas encostas, a relva e a neve que as rodeia. Porque estão abandonadas, quem nelas passou e as marcou.
Tonino Guerra leva-nos nessa viagem, as casas esperam crentes.

- Foi ao longo do Marecchia, dessa paisagem de uma beleza rude e nobre, que o futuro argumentista de tantos filmes que amamos descobriu a sua caverna de Alibabá, um espaço que ele guarda ciosamente dentro de si como se fosse o último sobrevivente de um tempo que deixou de existir, um lugar ameaçado pela ausência e o esquecimento. Por isso insiste em escrever poemas num dialecto que praticamente ninguém já fala - o romanholo - e se conserva fiel, nos seus pequenos contos, narrativas, «vinhetas», à oralidade dos relatos que ouviu em pequeno ou que (re)cria como se fossem fábulas tão remotas como o mundo, histórias extraordinárias de uma sabedoria primitiva, radiosamente inocentes, maliciosas, pícaras.
-- da introdução, de Vicente Jorge Silva.

(crónica do Rui no 5 Minutos)

domingo, janeiro 18, 2004

Bertolt Brecht

Nos dias de hoje, em que nos questionamos muito pouco a respeito daquilo que nos rodeia, é sempre bom recordar Brecht e as suas perguntas e afirmações...
Recordei-o um destes dias e partilho-o com vocês.
A obra completa está publicada em português (mesmo que seja do Brasil) e as livrarias estão por aí. Para quem quiser ler...


Perguntas de um Operário Letrado

Quem construiu Tebas, a das sete portas?
Nos livros vem o nome dos reis,
Mas foram os reis que transportaram as pedras?
Babilónia, tantas vezes destruída,
Quem outras tantas a reconstruiu? Em que casas
Da Lima Dourada moravam seus obreiros?
No dia em que ficou pronta a Muralha da China para onde
Foram os seus pedreiros? A grande Roma
Está cheia de arcos de triunfo. Quem os ergueu? Sobre quem
Triunfaram os Césares? A tão cantada Bizâncio
Só tinha palácios
Para os seus habitantes? Até a legendária Atlântida
Na noite em que o mar a engoliu
Viu afogados gritar por seus escravos.

O jovem Alexandre conquistou as Indias
Sozinho?
César venceu os gauleses.
Nem sequer tinha um cozinheiro ao seu serviço?
Quando a sua armada se afundou Filipe de Espanha
Chorou. E ninguém mais?
Frederico II ganhou a guerra dos sete anos
Quem mais a ganhou?

Em cada página uma vitória.
Quem cozinhava os festins?
Em cada década um grande homem.
Quem pagava as despesas?

Tantas histórias
Quantas perguntas.

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Há homens que lutam um dia, e são bons;
Há outros que lutam um ano, e são melhores;
Há aqueles que lutam muitos anos, e são muito bons;
Porém há os que lutam toda a vida
Estes são os imprescindíveis.

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Do rio que tudo arrasta se
diz que é violento
Mas ninguém diz violentas as
margens que o comprimem

Bertolt Brecht

A IDENTIDADE - Milan Kundera

«Chantal e Jean-Marc vivem juntos em Paris, e amam-se tanto que por vezes parecem confundir-se. Há situações em que, por um instante, nenhum dos dois se reconhece, em que a identidade do outro se dissolve e em que, por tabela, cada um duvida da sua própria identidade. Todo aquele que ama, todo aquele que faz parte de um casal, já alguma vez experimentou essa sensação, porque o que mais teme no mundo quem ama é "perder de vista" o ser amado. Pouco a pouco, é isso que acontece a Chantal e Jean-Marc. Mas em que instante, diante de que gesto, em que circunstância precisa começa esse processo aterrador? É nesse momento de pânico que Kundera agarra o leitor, obrigado a mergulhar no labirinto que o próprio casal percorre e a cruzar, como ele, a fronteira entre o real e o irreal, entre o que ocorre no mundo exterior e o que, solitariamente, elabora uma mente dominada pela insegurança. Como seguindo o fio de um início projecto de largo alcance, que parece iniciar-se com A Imortalidade, Kundera volta a abordar um tema essencial da nossa época, fazendo-o inesperadamente, desta vez, sob a forma de um romance de amor.»

"A Identidade", de Milan Kundera (trad. Pedro Tamen), edições asa, (6ª edição), 161p., pvp:4.50€

«O mal-estar suscitado pelo sonho era tão desmesurado que se esforçou por decifrar a razão de tal. O que a perturbou assim, pensa ela, foi a supressão do tempo presente operada pelo sonho. Está apaixonadamente apegada ao seu presente e não o trocaria por nada deste mundo, nem pelo passado nem pelo futuro. Por isso é que não gosta de sonhos: impõe uma inaceitável igualdade entre diferentes épocas de uma mesma vida, uma contemporaneidade niveladora de tudo o que o homem alguma vez viveu; desconsideram o presente negando-lhe a sua posição privilegiada.» p.8,9

«Como pode ele querer mal a Chantal por pertencer ao seu sexo, por se parecer com as outras mulheres, por usar soutien e, com ele, a psicologia do soutien? Como se também ele não pertencesse a uma qualquer imbecilidade eternamente masculina! Ambos vão buscar a sua origem a essa oficina de pequenos trabalhos onde se deu cabo dos olhos com o movimento desarticulado de uma pálpebra e onde se instalou uma fabriqueta fedorenta na barriga. Têm ambos um corpo em que a pobre alma ocupa um ínfimo lugar. Não deveriam perdoar isso um ao outro? Não deveriam ultrapassar as pequenas misérias que escondem no fundo das suas gavetas? Foi possuído por uma imensa compaixão e, para colocar um traço final naquela história, decidiu escrever-lhe uma última carta.» p.103,104

(NR: crítica ao livro, em inglês, no artobello.de)

ANJOS DO UNIVERSO - Einar Már Gudmundsson

«"Tu não tens tomado conta dos teus anjos", diz Baldvin, o Rei do Império Britânico, a Páll, quando descobre que aquele rapaz esperto e audaz, nascido no dia em que a Islândia aderiu à NATO, trocara a infância e a família por uma existência naufragada entre as ruas de Reykjavík e o Hospital Psiquiátrico de Kleppur. Entre os seus companheiros, encontram-se Óli Beatle, às voltas com os direitos relativos às suas famosas composições musicais, e Viktor, cada vez mais profundamente imerso na pele de Hitler. As tragédias silenciosas e as aventuras atrevidas do subtil e espirituoso grupo de personagens de Gudmundsson iluminam o processo de isolamento e fragmentação de Páll, personagem central enquanto espectador e narrador da sua própria vida.»

"Anjos do Universo", de Einar Már Gudmundsson (trad. Gudlaug Rún Margeirsdóttir), Canguru, Abril 2003 (1ª ed.), 238p.

«Uma vez, andava eu com o cocar de penas na cabeça, consegui trazê-la para dentro da minha tenda de índio, sob o pretexto de que era um curandeiro.
Disse-lhe que a minha função era investigar todas as pragas que atacavam a aldeia e entregar um relatório ao chefe.
Stína entra dentro da tenda e deita-se de barriga para cima. As coxas são grandes e rechonchudas; ao tentar auscultar o seu ventre em busca de sons, a minha cabeça balouça como um barco em alto mar.
- Consegues ouvir alguma coisa? - pergunta Stína.
- Não - respondo. - Tens que tirar as calças.
As penas do cocar fazem-lhe cócegas no nariz e ela ri-se ao tirar as calças. Encosto o meu ouvido ao útero nu e fico à escuta, à procura de um ritmo.
- Consegues ouvir alguma coisa agora? - pergunta Stína.
- Sim, agora consigo - digo.
- Ouves o quê?
- Oiço o coração.
- Está aí? - pergunta Stína.
- Sim, está - respondo.
- Ainda bem - diz Stína -, ainda bem.
Stína ficou contente e, nos dias seguintes, estava sempre a perguntar-me se não queria ir para dentro da tendinha e ouvir o bater do coração.» p.50,51

«Numa altura qualquer, de noite ou de manhã cedo, vou a caminhar pela estrada para Keflavík; a viagem da minha casa até lá é um grande buraco negro.
Nem tão-pouco sei porque os meus sapatos desapareceram dos pés e as meias também. Estou descalço, mas ainda tenho o rádio portátil nas mãos, está sintonizado na Emissora das Forças Norte-Americanas.
Está chuva e nevoeiro. As musgosas extensões de lava escondem-se. Não se vê uma única montanha. Somente a estrada para Keflavík, encharcada pela chuva.
É o fim da noite ou de manhã muito cedo, e as poucas pessoas que passam por mim de carro devem pensar que eu sou um fantasma, um morto-vivo ressuscitado do cemitério de Hafnarfjördur, ou até o infame Fantasma de Stapi.
Nessa altura, pára junto de mim uma carrinha da polícia. Saltam lá de dentro dois agentes, que abrem as portas de trás. Não tento sequer pôr-me ao fresco, mas eles algemam-me na mesma. Com certeza que andavam à minha procura.
Ajudam-me a subr para dentro da carrinha e sento-me atrás, no banco lateral. O rádio ainda está ligado.
- Já o apanhamos - diz o condutor-
Um dos polícias vem sentado atrás comigo. É muito novo. Os dedos dos meus pés estão cor-de-rosa e azuis e pinga-me água dos cabelos. Mesmo assim, não me sinto frio nem molhado.
- Também vens? - Pergunto ao jovem polícia sentado à minha frente.
- Para onde? - diz.
- Para os Estados Unidos da América.
- E o que é que eu ia para lá fazer? - pergunta.
- Podias segurar o rádio portátil - digo.» p.158,159

sábado, janeiro 17, 2004

ANGÚSTIA PARA O JANTAR - Luís de Sttau Monteiro

«Nunca vi nada que não fosse lógico. Tudo tem uma lógica, muito embora esteja por vezes escondida. É a isso que chamamos o segredo das coisas. O que distingue os homens lúcidos dos inconscientes é que os primeiros procuram descobrir a lógica das coisas, ao passo que os segundos julgam que as coisas surgem por si próprias e procuram, não a sua lógica, mas a sua rima.» p.24

«Gonçalo entrara um dia, à hora do almoço, em casa do porteiro dum dos seus prédios. A família estava reunida em torno da mesa. A mãe e os filhos comiam batatas fritas e o pai o único bife. Fora-lhe impossível não comentar.
- Então a carne é toda para si, João?
A mulher saltara logo a defender a casa portuguesa:
- Carne é para quem trabalha, Sr. Doutor.
O porteiro passara a manhã sentado numa poltrona, no átrio do prédio, lendo O Século, enquanto a mulher varrera a escada, limpara a casa, cozinhara e olhara pelas crianças.
- Parece-me que a Maria é quem mais trabalha nesta casa...
O porteiro, de pé, com o guardanapo na mão, esclarecera a situação:
- O marido sou eu, Sr. Doutor.» p.29,30

«- A cidade, vista à noite, é estranha. Já pensou no que farão em casa todos esses tipos que a gente vê na rua, com emblemas do Benfica na lapela? Uns emblemas feitos de pedrinhas?
- Sou um deles.
- É? E que faz você à noite, em casa?
Hoje era capaz de responder. À noite, em casa, repetimos o que fizemos durante o dia: nada. À noite, em casa, continuamos a esperar pela morte e, quando ela se aproxima, compreendemos que devíamos ter feito mais qualquer coisa.» p.144

"Angústia para o Jantar", de Luís de Sttau Monteiro, areal editores, Outubro 2002, 205p., pvp.13€

Estas são personagens que vivem diariamente com o medo: da morte e da vida adiada, de que os 2500$00 não cheguem até ao fim do mês, que a fortuna e o estatuto já não passem para a geração seguinte, que a primeira vez nunca mais volte a acontecer. Isto num cenário em que todas as posições estão bem definidas, patrões e empregados, senhoras e pegas, em que a palavra “revolução” das conversas da malta tinha um sentido diferente do que lhe conhecemos hoje.
Ao lermos esta obra, não é de espantar que Luís de Sttau Monteiro tenha sido várias vezes preso pela PIDE. Não há sequer referências directas ao regime político de então: é um “Isto já não chega aos nossos filhos...” que se lê aí e se sente em todo o livro. No fundo, “quem vence as batalhas é quem está dentro do seu tempo”.
Um grande bem-haja a quem me sugeriu a sua leitura. Angústia para o Jantar é uma das primeiras obras do extenso legado que Luís de Sttau Monteiro nos deixou.

«Levantou-se, deu a volta ao sofá e aproximou-se da janela. Lá fora a chuva parara. Por entre uma aberta nas nuvens via-se o Sol, um Sol da cor do aço frio, e indiferente. Durante uns momentos, telhados molhados reflectiram a luz acinzentada do fim do dia. Depois, subitamente, as nuvens juntaram-se e recomeçou a chover. Lá em baixo, na rua escura e suja, passaram dois cães a correr, e ao fundo, à esquina, surgiram uns vultos curvados que logo desapareceram pela porta da taberna.
Teresa voltou a sentar-se. Parecia-lhe que acabara de ver o futuro. A rua escura e suja, a luz acinzentada e os vultos lá ao longe, à porta da taberna, constituíam uma antevisão do mundo pelo qual se batiam o Pedro e os seus amigos. Sem que soubesse porquê, voltou a ter medo.» p.151

terça-feira, janeiro 13, 2004

A MORTE DE UM APICULTOR - Lars Gustafsson

«Westin não é muito velho. Nasceu no dia 17 de Maio de 1936. Mas parece ter muito mais de quarenta anos: está magro, estragado, com o cabelo ralo. Usa óculos, daqueles de aros finos, de metal, que acentuam a impressão de magreza. Vive em condições económicas extremamente modestas, mas isso não o preocupa.
O que vamos ler são apontamentos dele. Apontamentos deixados por ele, pois nesta Primavera de 1975, precisamente por alturas do degelo, ele descobre que antes do Outono terá desaparecido. Tem um cancro mortal que, finalmente, mas tarde de mais, é localizado no baço, com fortes metástases nos tecidos circundantes.
A voz que vão ouvir a partir de agora é a dele, não a minha, e por isso me despeço aqui.» p.22

«Será o povo sueco mais paciente que os outros povos? Não sei grande coisa a este respeito. Nunca viajei muito na minha vida. Duas viagens de bicicleta pela Dinamarca no início dos anos 50, um torneio de ténis de mesa em Kiel, na Alemanha Ocidental, e uma série de passeios à Noruega atravessando a fronteira em Femundsänden, por Orsa e Idra, não são muito informativos. Tenho uma certa tendência para ver o mundo exterior à Suécia como qualquer coisa de literário, qualquer coisa que aparece nos livros e nos jornais.» p.34

"A Morte de um Apicultor", de Lars Gustafsson (trad. Ana Diniz), edições asa, Fevereiro 2001 (2ª ed.), 174p., pvp:8,50€

Lars Westin sabe que vai morrer em breve. As dores lembram-lhe disso mesmo. Foram essas dores que o levaram a adquirir uma nova consciência de si mesmo, do seu corpo, da solidão. Mas será que sabe? Afinal, a vontade de viver fez arder a resposta e assim a esperança subsiste. A solidão leva-o a registar memórias de outros tempos, acontecimentos banais do presente mas que marcam os dias, temores.
É com intenso prazer que releio este livro do sueco Lars Gustafsson, originalmente publicado em 1978, e que tem mais 3 livros traduzidos em Portugal, todos na Asa.

«... desde as três da manhã, com intensidade crescente, partindo do mesmo ponto que antes e ramificando-se para a coxa e o diafragma, primeiro o grau de intensidade normal, depois aumentando para a incandescência branca.
Eu sabia que era só uma trégua.
Curiosamente, tenho a sensação de que a utilizei bem.» p.163

segunda-feira, janeiro 12, 2004

COMO ME TORNEI ESTÚPIDO - Martin Page

"O que fazer quando o “excesso” de inteligência e lucidez ameaça arruinar uma existência já de si atormentada? Irónico e bem-humorado, Como Me Tornei Estúpido é uma pedrada no charco do nosso quotidiano, um romance que, longe de ser moralista, aponta as contradições com que nos deparamos no dia-a-dia e sobre as quais frequentemente já nem reflectimos."

Colecção: Pequenos Prazeres, edições Asa, Julho de 2003 (1ª edição) PVP: 9,5€

"Antoine é um jovem licenciado em Aramaico, Biologia e Cinema, cuja inteligência e sensibilidade não só não lhe proporcionam a menor satisfação como pelo contrário, o paralisam e afundam numa melancólica solidão... Antoine espera pois encontrar na estupidificação a chave da felicidade..."

Passagem do Livro:

"Antoine reuniu Charlotte, Ganja, As e Rodolphe no seu novo ambiente para uma merenda islandesa. A mesa estava cheia de delícias nórdicas: chá com manteiga, loukoums de pinguim, beignets de gordura de foca com ervas de conserva..."

Leia a minha opinião pessoal sobre este livro aqui .