«Finalmente, ao fim de muitos anos, aconteceu uma coisa absolutamente inesperada.
Por vezes uma pequeníssima mudança é o suficiente. Dissemina-se pela trama imensa de recordações e hábitos que é uma pessoa. Irresistivelmente. E muda toda uma vida. Nada há que permaneça. O mundo real não tem recordações. Vem sem etiquetas.» pág.7
Lars Gustafsson é o autor de A Morte de um Apicultor, obra de culto aqui para estes lados, e repete a presença no pilha com A Amante Colombiana. Editado originalmente em 1996, chegou até nós pelas mãos da Asa em Setembro de 2001, mas foi uma das leituras do Pedro (habitual colaborador desta casa) no ano passado, e uma das suas preferidas.
«É certo que era feia. Era feia. Era francamente feia. Mas, como ele sempre dissera a si próprio, era feia de uma maneira interessante. E quanto mais se olhava para ela, mais interessante. O perfil direito e anguloso, com um nariz comprido, os seios pequenos e lisos (que talvez emanassem calor; os seios pequenos e lisos às vezes emanam um calor surpreendente), os olhos, escuros como poços negros e profundos numa velha ruína do deserto. O conjunto era de facto muito interessante, mas ele nunca tivera tempo para lhe prestar muita atenção. E na verdade nunca observara nada disto antes daquela manhã de Outubro, esplendorosa e límpida.
Ela vinha sempre às segundas e sextas. Era o combinado.» pág.9
Serenidade nórdica, fotogenia sueca, sensualidade latina, pragmatismo europeu; e o valor que a vida (de todos e de cada um) tem lá para os reinos do Norte.
Quase se arrancam as páginas com a voracidade com que se lê.
«Estava bem, estava esmagadoramente bem. Estava tudo bem.
Mas havia também qualquer coisa de desagradável. Esta passagem de uma forma habitual de se relacionar com uma pessoa para outra. Como por acaso, tinha dado o salto de um quase desconhecimento para uma espécie de conhecimento profundo. Tinha saltado por cima de tudo o que se encontrava entre as duas coisas. E esse «entre» era grande como os oceanos e os continentes. Ao mesmo tempo, era justamente o desconhecimento que se tornava aliciante. Dava-lhe um pouco a sensação de se preencher com o conteúdo de outra pessoa. Ou de, por um momento, entregar o seu próprio conteúdo, já por demais conhecido, a alguém totalmente desconhecido.
- Eleonora - disse ele, passando a mão gentilmente, numa carícia, de um seio para o outro - Eleonora, o que é que tem tanta graça?
- O señor Dick foi o primeiro homem que me tocou.
- Que te tocou?
Não ousou pedir-lhe uma tradução. Não estava certo de ter compreendido.
Mas Eleonora repetiu, agora com um sorriso radioso e uma luz suave nos olhos castanhos, água profunda, húmus líquido onde parecia brilhar por vezes um reflexo do sol, aquilo que tinha dito:
- O senõr Dick foi o primeiro homem na vida que me tocou.» pág.62
A Amante Colombiana, de Lars Gustafsson (trad. Ana Diniz), edições Asa, Setembro 2001, 160 pág., pvp:3,50€ (preço Azul Asa)
Damos assim início a um balanço, a um revisitar de livros e histórias num ritmo (quase) diário, para acompanhar ao longo das próximas semanas. No entretanto, continuamos com a porta aberta a sugestões e opiniões, acrescentos e comentários aos livros que foram e aos que hão-de vir.
Apenas uma nota: para minha alegria, num já alargado conjunto de escolhas que chegaram até cá, nenhum livro é referido por mais que uma vez. Ainda bem :)
Até já!
Sem comentários:
Enviar um comentário