«3 de Abril, 2002
A destruição do centro histórico de Nablus
Estava deitada no sofá da sala de estar, a desfrutar do sossego da hora da sesta da minha sogra. Estava totalmente absorvida pelo estúdio de Vermeer, na minha leitura do Rapariga com Brinco de Pérola, quando olhei de relance para o ecrã de televisão.
Ah... fiquei tão desanimada ao ver, mais uma vez, o símbolo de khabar 'ajel (notícias de última hora) a aparecer no canal de TV. Surge no ecrã o rosto pálido e exausto de Walid al-Omari, correspondente principal de Al-Jazeera, a falar da cidade cercada de Ramallah.
«Crê-se que pelo menos treze pessoas da família Shu'bi tenham falecido sob os escombros da sua casa no bairro de al-Yasmineh, no centro histórico de Nablus. Os seus vizinhos têm andado desesperadamente a tentar resgatá-los, apesar do recolher obrigatório imposto à cidade há já oito dias.» No mesmo tom de seriedade, al-Omari continua:
«Já é o oitavo dia consecutivo de confrontos violentos no centro histórico de Nablus. A resistência armada palestiniana tem conseguido, até agora, impedir o Exército Israelita de avançar pelas vielas estreitas da zona antiga da cidade. Julga-se que terão morrido muitos civis, bem como combatentes palestinianos. Os caças israelitas têm bombardeado a parte antiga da cidade e, por conseguinte, muitos dos edifícios históricos já desabaram. Entre estes encontra-se o Caravan Sari otomano do século XVIII, que as gentes locais denominam al-wakalh al-farroukkyyeh. As fábricas de sabão de Canaã e Nablus foram demolidas para que os tanques israelitas possam passar pelas vielas estreitas do centro histórico de Nablus. A Igreja Ortodoxa, bem como a Mesquita al-Naser, sofreram grandes danos.»
(...)
Comecei a imaginar aquelas belas pirâmides de sabão, de que me recordo desde a infância, a voar pelo ar ao serem atingidas pelos F16. Aqueles cubos de sabão natural, que outrora fizeram parte das composições artísticas mais belas de sempre, e os cubos de pedra históricos, que agora fazem parte de um monte de escombros.
De repente lembrei-me que era nas treze pessoas, presas debaixo dos escombros, todas da mesma família, a família al-Shu'bi, que eu devia estar a pensar. Senti-me bastante envergonhada.
Limpei, com as costas da mão, o nariz e as lágrimas que me caíam pela cara abaixo, e voltei a sentar-me no sofá da sala de estar para ver o resto do noticiário.
O Exército Israelita tinha demolido um total de quatrocentas e vinte aldeias palestinianas; Saris, Bayt Jibrin, Bayt Nattif, 'Allar, Qalunya, al-Walaja, 'Emoas... bem como o bairro de al-Manshyyeh em Jafa, o bairro marroquino na zona antiga de Jerusalém, centenas de casas «clandestinas» na zona leste de Jerusalém, dezenas de casas em Khan Younis, centenas de milhares de oliveiras e palmeiras, agora o bairro al-yasmineh em Nablus e amanhã, quem sabe, o centro histórico da cidade de Hebron.
Sharon, estás a trazer-nos à memória os nossos piores pesadelos.» págs.77 a 79
O quotidiano e as recordações de uma arquitecta e professora universitária palestiniana durante a ocupação israelita ou como, por mais telejornais que vejamos, a nossa compreensão do que se passa não chega a traduzir-se numa compreensão efectiva do que realmente significa viver naquelas circunstâncias.
Sharon e a minha sogra, de Suad Amiry (trad. Sofia Slotboom), da Ambar, Setembro 2004, 119 págs., pvp: 10,82€. Capa da edição italiana, na Giangiacomo Feltrinelli Editore, muito semelhante à da edição portuguesa.
Uma das escolhas do ano para Cláudia Silva, colega de profissão e (espera-se) futura colaboradora regular do pilha, este "Sharon e a minha sogra" é um diário de guerra contado na primeira pessoa, ao mesmo tempo que nos deparamos com as cicatrizes que marcam aquela região há já tantos anos.
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