«Um ou dois dias mais tarde, enquanto folheava o jornal local com as suas bisbilhotices e os seus anúncios de lições de bouzouki e reuniões matinais em volta de um café na igreja anglicana («abertas a pessoas de todas as confissões religiosas»), o minúsculo anúncio de Kester tinha-me chamado a atenção. Aluga-se casa em Gastouri por dois meses, dizia o anúncio. Ocupante ausente em viagem. Renda moderada. À primeira vista, não esclarecia grande coisa. Não havia sequer um número de telefone. Mas aquele Ocupante ausente em viagem seduziu-me, e gostei também da ideia de Gastouri, onde quer que isso ficasse. Aquele nome dizia-me qualquer coisa.» pág.17
Pode ser um livro de viagens, em sentido lato. Começa com a viagem de um homem (lamento, mas não consigo fugir à frase feita!), em busca de si mesmo, do sentido da sua vida, dos seus objectivos, dos seus limites e das suas raízes. Uma viagem que é também uma fuga, cega e desfocada.
«Curiosamente, a casa, embora escassamente mobilada, estava longe de parecer vazia. A cozinha, no rés-do-chão, parecia convidar à conversa, a mesa pouco firme como que pedia que se sentassem à sua volta, e o silêncio fresco nos dois quartos de cima parecia estranhamente habitado. Era uma espécie de silêncio confortável e íntimo, o tipo de silêncio em que nos podemos instalar, que nos invade a pouco e pouco no fim de um longo serão com um amigo. Seriam os livros amontoados nas prateleiras feitas em casa que me davam aquela impressão? E. M. Forster, Peer Gynt, Annie Besant, Clive James, a Odisseia e vários números antigos da Time Magazine - para dizer a verdade, uma miscelânea curiosa. Seriam as fotografias emolduradas espalhadas pela casa? As pinturas amadorísticas penduradas bem alto nas paredes? O vago cheiro a cão? Era difícil dizer se a vida vivida naquelas divisões era rica ou mesquinha - não havia simplesmente indícios suficientes.» págs.20 e 21
E no entanto acaba por entrar na vida de um outro homem, um estranho, ausente, quase um fantasma, mas que representa uma espécie de figura tutelar, bem como uma projecção do narrador, como que um duplo desfazado, ao qual se vê estreitamente ligado por um conjunto de circunstâncias comuns.
«Depois do meu encontro com Sissi não consegui regressar à minha carta. Não consegui encontrar inspiração. Sentei-me simplesmente à secretária junto à janela por um bocado e olhei pela colina acima para o palácio branco. Sem pensar, para me distrair, abri a gaveta da secretária aí uns cinco centímetros e espreitei lá para dentro. Por momentos pensei, lembro-me, se seria imoral procurar nas gavetas de outra pessoa sem ser autorizado, mas decidi que não era moral nem imoral em si e abri-a completamente. Cheirava deliciosamente - a papel, a pó, a cola antiga e a lavanda. Eu ia gostar desta gaveta.» pág.36
E é ao vislumbrar e analisar a essência desse indivíduo que acaba por encontrar as suas respostas, e o seu caminho.
«Sob a perfeição de um romance, está subjacente uma sensação que me agrada de uma história em espiral. É uma dupla-hélice: o desejo enrolado à volta da adoração. E assim, na falta de outra palavra para o descrever, o que Kester e Alan tinham, suponho, era um Grande Romance. É raro. E, naturalmente, condenado. Condenado à vulgaridade. A surpresa desaparece - como desaparece de um conto palavroso, por muito divertido que seja. Tal como o desejo. Mas no início, quando inundados de prazer, ficamos espantados com o que acabámos de ver, o conto em espiral está todo na nossa cabeça. Isso é romance.» pág.267
Histórias dentro de histórias dentro de histórias; histórias que se multiplicam, que se encadeiam, que se entrecruzam, que se fragmentam, que se dividem, que correm paralelas, ou nas entrelinhas.
Abordagens que se tornam lugar-comum, graças à banalização da escrita criativa.
Não são muitos os escritores que conseguem emergir da mediocridade da literatura comercial sem fazer concessões à qualidade da escrita, à coerência dos argumentos, à vivacidade da acção, sem cair na intelectualidade pretensiosa, hermética, estéril, sem repudiar um público que espera ser envolvido, cativado, desafiado.
Corfu, de Robert Dessaix, da Gótica, Abril 2004 (edição original: 2001), 306 pág., pvp: 15,00 €
Links:
Picador Australia Reading Group Notes
Trinity College - Steep Stairs Review
An Interview with Robert Dessaix
Desses poucos, Robert Dessaix foi um dos escolhidos de Astianax, colaborador e vizinho do pilha, autor do texto crítico acima publicado, e que ainda voltará à nossa companhia durante esta saga.
Só mais uma frase de "Corfu", a eterna dúvida:
«Uns apertos de mão, a sua mão no meu ombro - será que ficou lá só uma fracção de segundo a mais? - e saíram porta fora.» pág.45
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