quinta-feira, junho 17, 2004

MEMÓRIAS DE ADRIANO - Marguerite Yourcenar

Tentei eleger o meu livro preferido de todos os tempos, para começar. Impossível. Cada livro tem uma personalidade própria, pelo que, devido aos meus estados de espírito meteorológicos, tenho com eles uma relação inconstante e imprevisível. Ao fim de algumas horas a matutar, lá consegui reduzir para sete uma lista de dezenas de livros, e de entre esses, finalmente, escolher um.

É um livro que me marcou, quer porque entrou na minha vida no momento certo, quer porque continua a deslumbrar-me, a fascinar-me, a intrigar-me de cada vez que o releio.

O homem mais poderoso do mundo (ao seu tempo) vai-se despindo, diante dos nossos olhos, perante o fantasma de uma morte próxima. Peça a peça, desmonta a sua vida, as suas acções, os seus pensamentos, os seus julgamentos, os seus sentimentos. Conta-nos histórias de guerra e jogos de poder. Histórias de amor e jogos de cama. Fala-nos das glórias e das misérias dos homens, em particular das suas. Fala do horror e da beleza. Diz:

"Acreditei outrora que um certo gosto da beleza substituiria em mim a virtude, saberia imunizar-me contra as solicitações demasiado grosseiras. Mas enganava-me. O amador de beleza acaba por encontrá-la em toda a parte, filão de ouro nos mais ignóbeis veios..." (pág. 19)

E faz-me lembrar Oscar Wilde.

Fala também de livros:

"A palavra escrita ensinou-me a escutar a voz humana, assim como as grandes atitudes imóveis das estátuas me ensinaram a apreciar os gestos. Em contrapartida, e posteriormente, a vida fez-me compreender os livros. (...) Adaptar-me-ia muito mal a um mundo sem livros; mas a realidade não está lá, porque eles a não contêm inteira." (pág. 24)

"O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que, pela primeira vez, se lança um olhar inteligente sobre si mesmo: as minhas primeiras pátrias foram os livros." (pág. 34)

Classificar este livro, como aliás, todos os outros, é redutor. Romance histórico? Com certeza. Mas qual é o livro que, mais cedo ou mais tarde, não acaba por sê-lo? Além disso, este livro podia ter sido escrito no séc. II (época em que viveu o protagonista), no séc. XX (quando foi realmente escrito), ou daqui a cem anos, que nem por isso ficava a dever fosse o que fosse à actualidade.

Romance Gay? Pode ser. Mas está escrito no próprio livro: "Um homem que lê, ou que pensa, ou que calcula, pertence à espécie e não ao sexo; nos seus melhores momentos escapa mesmo ao humano." (pág. 57)

Uma autobiografia? Parece, mas não é. Fica-se sem saber se é Marguerite Yourcenar que dá voz ao Imperador Adriano, se é ele que empresta a alma à escritora. Mas chama-se "Memórias de Adriano".

"Memórias de Adriano, seguido de Apontamentos sobre as Memórias de Adriano" (Mémoires d'Hadrien, suivi de Carnets de Notes de Mémoires d'Hadrien, 1974), Marguerite Yourcenar (trad. Maria Lamas), Ulisseia, 12ª edição, Abril 2000, 288 pág.


texto por Astianax

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