PERDIDO NUM LIVRO
«Entrei pela porta de um livro e fechei-me lá dentro com as palavras acesas e as luzes apagadas. A minha mãe deu dez voltas à casa à minha procura. "Onde é que o miúdo se terá metido?" Com medo de ser encontrado, eu saltava das páginas pares para as ímpares e enrodilhava-me, feito bicho-de-conta, entre dois parêntesis ou, por ser muito magro, atrás de um ponto de exclamação.
Era a primeira vez na minha vida que eu me fechava dentro de um livro. Antes já me fechara dentro de um armário, na gaveta de uma cómoda, no sótão e na despensa. Agora, afoito e insensato, dava um passo de gigante no meu aventuroso destino de menino dos assombros, e escondia-me dentro de um livro, disposto a permanecer ali o tempo que fosse necessário até a minha mãe desistir de me procurar e até todos me darem definitiva e irremediavelmente como desparecido.
(...)»
de José Jorge Letria
Antologia do Conto Português Contemporâneo (edição bilingue Português-Búlgaro) / Антология на съвременния португалски разказ, organizado por Petar Petrov, editado pela Five Plus / Пет плюс.
«O papá é livreiro. Adora os livros. Devora-os. É um verdadeiro ogre. Passa todo o dia a ler e às vezes toda a noite. É uma doença incurável, mas que não parece preocupar o nosso médico de família.
Todas as noites, uma nova pilha de livros desembarca lá em casa. Há livros por toda a parte, até nas casas de banho. É uma invasão. Impossível reclamar. Com o papá, os invasores têm sempre razão. Fala com eles como se fossem seres humanos. Inventa nomes para eles e trata-os por «os meus livrinhos». Todos os livros são seus amigos.
Eu não tenho amigos. E não gosto de livros. Por fora, sou parecido com o papá. Mas por dentro, somos dois estranhos.
(...)»
págs. 7 e 8
O bebedor de tinta (Le buveur d'encre), de Éric Sanvoisin e Martin Matje (traduzido por Sofia Empis), editado pela Dinalivro.
HARMÓNICA
«Um músico italiano (ele era da Sicília) escreveu algumas óperas belíssimas: "O Corsário", inspirada num poema de Byron, "A Sonâmbula", etc. Certo dia disse aos amigos:
"Ainda hei-de escrever uma ópera que nos lembre a estupidez e a crueldade humanas." Logo na abertura, o conseguiu. Tinha menos de 30 anos.
Mas que distância há entre um rapaz desses e o nosso repetido Lopes Graça!
Vou comprar outra gaita de beiços. Rádios, nunca mais. Avariam-se todos, pá.»
pág. 146
Hoje e sempre, Sebastião Alba.
Albas, de Sebastião Alba, editado pela Quasi em Outubro de 2003.
«(...)
O sorriso que devassou brevemente o meu rosto não
me pertenceu: porque ninguém o viu antes de ti,
nem o espelho se convenceu jamais a devolver-mo.
(...)
Tu não me pertenceste - e, se uma vez acreditei que
acontecias dentro do meu corpo, das outras vi-te a abraçar a
solidão com tanto ardor que concluí ser a memória quem
te mantinha vivo. (...)»
pág. 63
O Canto do Vento nos Ciprestes, de Maria do Rosário Pedreira, foi editado pela Gótica em Março de 2001.
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