sábado, março 12, 2011

chegou hoje

«A literatura da segunda metade do século XX é um campo bastante batido e pareceria improvável que houvesse ainda obras-primas à espera de serem descobertas nas línguas mais importantes, intensamente patrulhadas. E, no entanto, há cerca de dez anos, vasculhando num caixote de livros de bolso no exterior de uma livraria da Charing Cross Road, em Londres, deparei precisamente com um desses livros, Verão em Baden-Baden, que eu incluiria entre as obras mais belas, exaltantes e originais do que há de melhor num século de ficção e de paraficção.
As razões da obscuridade do livro não são difíceis de supor. Para começar, o autor não era um escritor profissional. Leonid Tsípkin (1926-82) era médico - na verdade, um conhecido investigador na área da medicina, que publicou perto de uma centena de artigos em publicações científicas na União Soviética e no estrangeiro. Mas - abandonem-se quaisquer comparações com Tchekov e Bulgakov - este escritor-médico russo nunca viu uma única página da sua obra literária publicada em vida.
(...)
Em princípios de Março de 1982, Tsípkin foi falar com o chefe do serviço de vistos de Moscovo, que lhe disse: «Senhor doutor, o senhor nunca será autorizado a emigrar.» A 15 de Março, uma segunda-feira, Sergei Drozdov informou Tsípkin de que a partir desse dia deixaria de pertencer ao Instituto. Nesse mesmo dia, o filho de Tsípkin, que fazia uma pós-graduação em Harvard, telefonara para Moscovo a anunciar que no sábado anterior o pai passara a ser finalmente um autor publicado. Azary Messerer conseguira que um semanário de emigrados russos de Nova Iorque, Novaya Gazeta, aceitasse Verão em Baden-Baden, que seria publicado em folhetim. O primeiro episódio, ilustrado com algumas fotografias de Tsípkin, fora publicado no dia 13 de Março.
Na manhã do sábado seguinte, 20 de Março, dia em que fazia sessenta e seis anos, Tsípkin sentou-se à secretária para continuar a tradução para russo de um texto médico inglês - traduzir era uma das poucas maneiras de ganhar a vida que restavam aos refuseniks (cidadãos soviéticos, normalmente judeus, a quem tinham recusado vistos de saída e que tinham sido despedidos dos empregos). Subitamente sentiu-se mal (um ataque de coração), deitou-se, chamou pela mulher e morreu. Tinha sido um autor de ficção publicado durante sete dias exactamente.»

das páginas 39 e 46 de Ao Mesmo Tempo, de Susan Sontag, editado pela Quetzal em 2011

Verão em Baden-Baden, de Leonid Tsípkin, foi editado pela Gótica em 2003

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