sábado, dezembro 27, 2003

ALBAS - Sebastião Alba

«PILHA-LIVROS
Pai:
É um país de comerciantes e clientes. Os camponeses é que se fodem; os operários também, mas é bem feito: têm sindicatos que parecem existir só nos meios de comunicação social. E para si próprios. Todos chegaram tarde à política. A maioria vive dela, e os outros são ainda aristotélicos.
Os comerciantes são de uma estupidez frenética. Sempre que posso, roubo-os. As esquadras de polícia já não me dizem nada: venho e vou, entro e saio. Mas roubo-os!
Os escritores viajam para congressos; hospedam-se (transgridem à noite), recebem prémios, e a Literatura foi dar uma volta.
Alguém me disse que eu “sujara as mãos pela segunda vez”. Referia-se, com certeza, à pele das mãos. As mãos sujas, à Sartre, são outra coisa, desde Pilatos. ...e também não é por roubar um pássaro ou um livro, que logo dá aos amigos, que o Alba tem as mãos sujas.» p.95

«E o que ele pensou foi: “este gajo anda com o pavo de ceder à ternura, a família perdida, os amigos já quase intemporais.
O leite da ternura humana, como diria Shakespeare, coalhou nele.
Qualquer dia, não traz mais livros ou pássaros a nossa casa.”» p.37

«De repente, ocorreu-me uma fábula de Esopo (grego que foi traduzido pelo fabulista francês La Fontaine) e chegou até nós por Bocage. Um lobo passa, com as costelas salientes, nos flancos, por um cão de pêlo muito luzidio. Diz-lhe o cão: “Tu escusas disso, pá!” O lobo ouvia. “Tenho ali a casota para me abrigar da chuva; refeições e as festas dos filhos da casa que gostam de mim.”
O lobo reparou numa depressão que havia à volta do pescoço desse cão, no pêlo.
“Que é isso, pá?”
“É da coleira...”
“Ora, ora...” p.74


«Albas», de Sebastião Alba, edições quasi, Outubro 2003 (1ª ed.), 288p., pvp:15,75€

Não duvido que será este “Albas” a introduzir a figura (e o espírito) de Sebastião Alba em muitas das nossas vidas. Desconhecido para muitos de nós até hoje, não é por aqui que entraremos no seu mundo poético. Temos sim uma porta aberta para a sua realidade, onde (sobre)vive à custa da música e das palavras, um lugar de fuga do real social que sempre renegou.
«Do lado de fora da porta é que eu estou bem.» p.94.
Cartas, bilhetes, rascunhos, notas de toda a espécie, numa recolha póstuma; a porta que se abre novamente. Não é uma viagem fácil, por entre um sem-número de referências pessoais e culturais, rasgos de lucidez e de demência, sem sabermos bem qual é qual, pondo em causa as nossas próprias concepções. Mas são estas viagens que deixam marca.

«O RASTO
Àqueles de nós que não têm muito dinheiro, mas são dadivosos e amáveis, a contingência espreita-os a toda a hora.
Arriscam-se a que um semi-idiota qualquer os espanque, a passar uma noite na esquadra, mas deixam, nos amigos, um sulco de afectividade que nada apagará.» p.189

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