quarta-feira, fevereiro 16, 2005

A Noite do Oráculo - Paul Auster (um ano de pilha vol.7)

«Se decidi atravessar a rua e entrar na loja, deve ter sido porque, secretamente, queria recomeçar a trabalhar - sem o saber, sem ter consciência da fome que se tinha vindo a acumular dentro de mim. Não tinha escrito nada desde que saíra do hospital em Maio - nem uma só frase, nem uma só palavra - e não sentira a menor inclinação nesse sentido. E eis que agora, sem mais nem menos, ao fim de quatro meses de apatia e silêncio, metia na cabeça que tinha de abastecer-me de um sortido completo de artigos novinhos em folha: canetas e lápis novos, um caderno novo, borrachas novas, cargas novas para as canetas, pastas e blocos novos, enfim, tudo novo.
(...)
Fosse porque o trânsito na Court Street teria parado nesse preciso momento, ou o porque o vidro laminado da montra seria extremamente espesso, a verdade é que, quando meti pelo primeiro corredor a fim de esquadrinhar a loja, apercebi-me subitamente da tranquilidade que ali reinava. Eu era o primeiro cliente do dia e o silêncio era tão denso, tão pronunciado, que conseguia ouvir a lapiseira do homem arranhando o papel atrás de mim. Hoje, quando me ponho a pensar naquela manhã, o som da lapiseira é sempre a primeira coisa que me ocorre. Admitindo que a história que vou contar faz algum sentido, estou em crer que foi aí que ela começou - no espaço daqueles breves segundos, quando o único som que restava no mundo era o som daquela lapiseira arranhando o papel.» págs. 9 e 10

O mestre da narrativa "matrioska" regressa com mais uma obra que fala de escritores, de editores, de pessoas que vivem de e para os livros. Mais uma vez os enredos e as circunstâncias são intrigantes e engenhosos.
Cada página representa uma porta, e cada porta sugere outra porta, fechadas umas, entreabertas outras, a despertar a curiosidade.
Os ambientes escorrem mistério e sortilégio. Os personagens são prova de um profundo conhecimento da natureza humana.
A escrita tem uma qualidade irrepreensível, que a tradução não afecta.
A leitura é aconselhada.

«Engoli os quatro comprimidos que tomava todas as manhãs ao pequeno-almoço, bebi algum café, comi uns bocados de torrada, e, depois, encaminhei-me até ao fundo do corredor e abri a porta do quarto de trabalho. A minha ideia era continuar com a história até à hora de almoço. Nessa altura, sairia e faria uma nova visita à loja de Chang - não só para procurar a fita adesiva de Grace, mas também para comprar os cadernos portugueses que ainda houvesse na loja, fosse qual fosse a cor da capa. Não tinha a menor importância se não fossem azuis. Preto, vermelho e castanho serviam perfeitamente, e eu queria ter o maior número possível de cadernos à minha disposição. Não para já, talvez, mas para ficar com uma reserva para futuros projectos, e, quanto mais adiasse o meu regresso à loja de Chang, maiores eram as hipóteses de que os cadernos desaparecessem.
Até então, escrever no caderno azul não me proporcionara outra coisa senão prazer, uma sensação louca, sublime, de plenitude. As palavras saíam de mim como se eu estivesse a fazer um ditado, a transcrever frases ditas por uma voz que falava na linguagem cristalina dos sonhos, dos pesadelos, dos pensamentos libertos de toda e qualquer peia. Contudo, na manhã do dia 20 de Setembro, dois dias após o dia em questão, essa voz calou-se subitamente. Abri o caderno e, quando olhei para a página que tinha à minha frente, dei-me conta de que estava perdido, de que já não sabia o que estava a fazer.» pág.93


A Noite do Oráculo, de Paul Auster (trad. José Vieira de Lima), da Asa, 201 págs., pvp: 15,00 €


Astianax volta a escrever sobre os seus livros do ano, desta vez convidando-nos a entrar no mundo de Paul Auster.


Links:
site oficial do autor
Oracle Night
Paul Auster Meetup Groups
Lisboa Paul Auster Meetup Group
Book Reviews
Book Reporter
Claque
DN Online

sexta-feira, fevereiro 11, 2005

UM CATÁLOGO DE SONHOS - José Carlos Fernandes

«"Um Catálogo de Sonhos" foi realizado em 1995 e publicado pela Pedranocharco em 1996, mas muito poucos exemplares foram vistos em circulação - há quem atribua este desaparecimento inopinado dos livros à mão dos Illuminati da Baviera. Outras teorias defendem que foi a CIA que procedeu à aquisição e destruição de (praticamente) toda a edição. Esta segunda hipótese ganhou mais credibilidade recentemente, com a divulgação de um relatório confidencial dos serviços secretos norte-americanos que sugere que José Carlos Fernandes será apenas o testa-de-ferro de uma equipa de argumentistas e desenhadores sediada em Chongjin, na Coreia do Norte, cujo objectivo é provocar a derrocada da civilização ocidental.

Refira-se ainda que, nos últimos meses, alguns dos raros coleccionadores que possuiam exemplares da primeira edição de "Um Catálogo de Sonhos" faleceram durante o sono, devido a causas não apuradas, e que os ditos exemplares desapareceram sem deixar rasto.»


Um Catálogo de Sonhos, de José Carlos Fernandes, editado pela Devir, 2004, pvp: 8,00€


«- Não respondeu à minha pergunta...
- As suas perguntas são estranhas...
- Suponho que sim... as perguntas de quem só se lembra do seu próprio nome devem parecer estranhas aos outros...»

O pilha saúda efusivamente mais uma reedição dum livro de José Carlos Fernandes.

domingo, fevereiro 06, 2005

Obras Completas I. Escritos autobiográficos y cartas - Edith Stein (um ano de pilha vol.6)

Primeiro de cinco volumes que reunirão os escritos de Edith Stein (ou freira carmelita Santa Teresa Benedita da Cruz, a filósofa alemã que em 1933, aos 42 anos, entrou para o convento Carmelo de Colónia), esta obra foi editada recentemente pela Editorial Monte Carmelo, de Espanha.

Cláudia Silva já aqui deixou uma das suas escolhas, Sharon e a minha sogra, mas refere-se a este livro que agora aqui apresentamos como o mais importante de 2004: "O relato comovente da filósofa e assistente de Husserl, os seus anos na universidade... Infelizmente, os editores portugueses não parecem muito interessados na filósofa que se tornou carmelita."

Foi por isso uma agradável surpresa ver o destaque dado a Edith Stein no Mil Folhas desta semana:
«Uma freira carmelita, companheira de Edith Stein, resume o que distingue esta judia que depois se fez baptizar como católica e professou como carmelita: "Na vida de Edith Stein, o homem moderno vê reflectido o seu próprio destino, com as suas revoluções ideológicas, com o seu afastamento de Deus, a sua ânsia de verdade e amor redentor de Deus", escreve Theresia a Matre Dei, en "Edith Stein - En Busca de Dios".»


O artigo refere a bibliografia da autora disponível em Portugal, assim como uma biografia publicada em Itália:
- As mais belas páginas de Edite Stein / Edições Carmelo / 112 págs. / 4,00€
- Edite Stein: modelo de mulher cristã / de F. Javier Sancho Fermín / Edições Carmelo / 128 págs. / 4,00€
- Edith Stein - Uma síntese dramática do séc. XX / de Mário Vaz / Edições Carmelo / 168 págs. / 6,00€
- Edith Stein - Imolação por Amor / de Eduardo Gil de Muro / editora Apostolato da Oração (Braga) / 184 págs.
- Edith Stein - La passione per la verità / de Angela Ales Bello / Edizioni Messaggero Padova / 144 págs. / 11,00€

Ao que podemos acrescentar "O Mistério do Natal", editado pela Rei dos Livros em 1999, com 70 páginas e um pvp de 5,24€.



Obras Completas I. Escritos autobiográficos y cartas, de Edith Stein (org. Julen Urkiza e F. Javier Sancho), da Monte Carmelo, 1766 págs., pvp: 63,50€



Ainda do Mil Folhas:
«Nos seus escritos, Edith evidencia a sua recusa absoluta do nazismo mas recusa, como Etty Hillesum, uma lógica de vingança: "O amor, na sua máxima realização, abarca o conhecimento. É ao mesmo tempo passivo e acto livre. (...) O amor é o mais livre que há, porque não dispõe só de uma emoção isolada, mas do conjunto do próprio eu, da própria pessoa... o amor deve ser sempre o dom de si, para que seja um amor autêntico."»