segunda-feira, março 15, 2004

A ÚLTIMA CONVERSA - Agostinho da Silva

A última entrevista que Agostinho da Silva deu foi no dia 9 de Outubro de 1993, a Luís Machado, que mais tarde a transpôs para livro. Uns meses depois, no Domingo de Páscoa de 1994, falecia essa personagem tão peculiar da identidade portuguesa, deixando-nos um imenso legado de livros, depoimentos, reflexões, histórias.
Esta conversa pode servir para termos um contacto mais pessoal com a sua vida e algumas das suas ideias, como porta de entrada para a sua vasta obra.
Para começarmos bem a semana, deixo a transcrição de uma das suas histórias, e este apontamento irresistível:

«LM - Portanto, isso quer dizer que, no fundo, o seu jornal preferido é mesmo o Público?
AS - É o Público, mas sobretudo é por causa do Calvin.» pág. 109


A Última Conversa, Agostinho da Silva entrevistado por Luís Machado, da Editorial Notícias, 9ª edição (Setembro de 2002; 1ª ed.: Maio de 1995), 125 pág., pvp: 8,73 €


«LM - Portanto, recapitulando o seu percurso: nasce no Porto, vai para Barca de Alva, volta ao Porto e depois vem para Lisboa. Não foi bem assim, porque a faculdade também a fez no Porto. É isso, não é?

AS - Sim, em Lisboa, o que fiz foi a Escola Normal Superior.

LM - Escola Normal Superior?

AS - É porque para entrar como professor efectivo nos liceus era necessário esse curso. Mas entretanto estive para não ir para o liceu, porque apareceu um concurso para professor de Belas-Artes. Aliás, cheguei a inscrever-me no concurso, porque se ficasse com o lugar, em vez de trabalhar toda a semana no liceu, passava a trabalhar apenas três horas por semana nas Belas-Artes. Bom, já depois de me inscrever encontro na rua um homem que não fazia outra coisa senão estudar história, sobretudo a história da 2ª Grande Guerra. Como não tinha emprego, vivia, estudava e trabalhava no café.
Começámos a conversar e ele disse-me que tencionava inscrever-se nesse concurso. Então respondi-lhe:
«- Ó homem, mas se você quer ir para lá, eu saio!»
E nessa mesma tarde fui lá e «desinscrevi-me.»
Algum tempo depois tive conhecimento que o grande filósofo Vieira de Almeida, um excelente professor da Faculdade de Letras, também se tinha inscrito nesse concurso para a Escola de Belas-Artes. Repare que o Vieira de Almeida era mesmo uma pessoa respeitabilíssima. Não sei se foi por isso ou por outra coisa, o certo é que decidi inscrever-me de novo. Quando voltei lá, o chefe de secretaria reconheceu-me e disse-me, furioso:
«- Outra vez!? Outra vez!? Você anda a brincar...»
«- Pois é, decidi voltar a inscrever-me.»
Para aquele concurso, era preciso redigir uma tese e apresentá-la impressa, portanto aquilo foi mesmo escrever de corrida, ir para a tipografia, voltar lá para corrigir as provas! Mas lá me chamaram para o exame e o primeiro professor a interrogar-me foi o Agostinho Fortes. Recordo-me que a sala tinha muita gente e que na assistência se encontrava o marido da Maria Keil, o arquitecto Keil do Amaral, que gostava muito de assistir aos exames.
Mas voltando ao exame: o Agostinho Fortes pegou então na minha tese e disse com um ar professorial:
«- Ora temos então aqui uma tese sobre um poeta pérsio ou latino que ninguém conhece. É curioso, sabe, mas olhe que não se percebe nada da sua pontuação, está tudo “barafustado”.»
«- O senhor professor dá-me licença?»
E ele disse:
«- Com certeza!»
«- Já sei que é um velho costume seu: quando o senhor não sabe das coisas, pega pela pontuação. Veja lá se hoje passa a outra coisa mais concreta, porque isso não adianta nada.»
Bom, como deve calcular, o efeito de uma resposta destas, para além de pôr a rir a assistência, «liquidou» o nosso amigo. O outro examinador era o perito, o homem que sabia muito de oceanos e dessas coisas.
Na véspera de eu ir lá (nessa altura vivia numa pensão, porque não tinha casa em Lisboa), estava no meu quarto quando um colega entrou e me disse:
«- Você por acaso já viu essa história do mar, das correntes? Olhe que eles agora andam a perguntar muito isso.»
Respondi-lhe:
«- Olhe, por acaso, esqueci-me completamente dessa matéria, mas mais logo vou ver se ainda consigo ver alguma coisa.»
Naquela noite estudei portanto as correntes, para o caso de aparecer alguma pergunta...
Mas então o tal professor chega lá e diz-me:
«- Quero saber o que é que o senhor sabe da corrente que vem do México e atravessa todo o Atlântico para chegar até aqui, às nossas costas. Descreva-me esse percurso.»
Bem, então eu lá descrevi, sem grandes hesitações, porque estava tudo ainda muito fresco, tinha aprendido na véspera. E o homem disse:
«- Mas ela aqui divide-se, o senhor não falou nisso!»
«- Mas divide-se como?», retorqui eu.
«- Há uma que passa mais abaixo da costa...», e tal, tal e tal... E eu então respondi-lhe:
«- Mas quais são os pontos por onde a outra passa, o senhor sabe?»
«- É indeciso.»
«- Pois é, então não vale a pena estarmos a falar de coisas indecisas, porque creio que estamos aqui é para falar de ciência. Ou o senhor sabe por onde é que passa a corrente, ou não sabe, mas por favor não complique mais a nossa vida.»
Escusado será dizer que a minha prova acabou logo ali. Quem ficou?, vai decerto perguntar-me você. O rapaz do café... No fundo, era o que eu queria. Eles não tiveram coragem de nomear o Vieira de Almeida, que, por acaso, também não fez grande figura no concurso, e a mim nem por sombras me queriam ver lá dentro, tomaram eles que eu desaparecesse. Aceitámos passivamente o resultado, dado que não queríamos causar mais complicações ao outro candidato...

LM - E o que é que aconteceu ao rapaz do café?

AS - Foi aprovado e passou a ensinar nas Belas-Artes, embora como de costume continuasse a estudar e a «viver» no café.» pág. 54 a 58

(ligações para a Associação Agostinho da Silva, o Instituto Camões e para uma página dedicada a ele)

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